terça-feira, 29 de novembro de 2011

Não fazemos todos coisas bem...

Há momentos deste lado da chuva que são puro deleite! Quer porque o calor humano faz um brilharete, a vida ganha novos contornos e se descomplica até ao infinito, quer pela capacidade de estar atenta no momento certo, aproveitando cada vírgula, pausa, respiração, pensamento ou frase, que se ergue entre mãos sujas de brilhantes crianças.

Hoje, entre a elaboração de um exercício sobre eixos de simetria e a leitura de números por classes e ordens (sim...ninguém se lembrará disto...mas a ganilhada  tem de sabê-lo na ponta da língua!), uma miúda beijou outra no pescoço em jeito de agradecimento por uma pequena ajuda. Acrescentou: "és uma fofa!" - ao que a outra replicou que fufa não era...até namorava o Artur que andava noutra escola e logo se prontificou a retirar um bilhetinho que ele lhe enviara pelo Miguel. 

Parou tudo... fez-se um enorme silêncio e eu remeti-me à postura de quem não está a ver o que se passa, nem sonha, nem ouviu nada...

A menina agradecida, a Rita, nem sabia o que lhe estava a acontecer, nem sequer adivinhava porque teria ela que ler as promessas de amor endereçadas à outra, a Joana. Esta, por fim... mais velhinha, mais malandra, já dominava claramente o calão e, por isso, necessitava de limpar a sua consciência que "quem não sente, não é filho de boa gente!" - disse-o esfregando o nariz.

O resto..., bem o resto estava a observar atentamente, até porque nunca se haviam metidos em tal embrulhada, quase em jeito novelístico, a roçar o melodrama - apesar de se sentirem mergulhados na total ignorância...que havia palavreado que não entendiam, de todo!

Saiu-lhe do bolso a jura de amor, e os olhos da maioria brilhou, encheu-se a sala de rubor e o orgulho de Joana fazia-la sentir-se importante - ainda que a história da ofensa tivesse passado para segundo plano, ou que a Rita já nem se lembrasse da diferença entre os vocábulos utilizados - Joana era a rapariga do momento! Devagar foram-se chegando perto do pequeno pedaço de papel, encardido mas com um desenho pintado a canetas de feltro...pé ante pé, soltaram risinhos e o Hugo exclamou "mas não há nenhum coração desenhado...assim não é de amor!". Zangada, ofendida, encostou no peito o seu segredo mais badalado e retorquiu: "o MEU Artur não desenha bem corações...mas eu gosto dele na mesma!". 

Estava assumido. Era o meu momento...fingi que só agora ouvira as suas vozes e que nem os teria visto levantarem-se do lugar. Perguntei-lhes que se passava, qual o motivo de tanto alarido...diz-me a pequena Rita... "Professora, a Joana tem um namorado que não sabe desenhar corações, mas não faz mal...não fazemos todos coisas bem, não é? Eu ainda não sei bem ler os números grandes...e tu gostas de mim, na mesma!" - E aquele sorriso desdentado, de quem ainda palmilha a inocência e se perde na honestidade dos dias, conseguiu segurar no seu punho a essência de todo o momento e apresentá-lo a todos como uma lição de vida.

Sim Rita, ninguém é perfeito, todos possuímos fragilidades, e eu gosto muito de ti!

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Uma mulher do antigamente!


É um lugar comum ouvir-se que as crianças dizem tudo o que lhes vai na alma, que são sinceras, que a verdade não escolhe máscaras. Poderá ser assim, embora por vezes sinta que algumas pessoas prefeririam que a boca de uma criança optasse por utilizar curvas em vez de rectas, de modo a que a realidade ficasse adulterada, não totalmente revelada, dissimulada. Que a dureza dos dias, não está para se sobrecarregar com ninharias que apenas farão sofrer alguns.

Eu, que trabalho com crianças - sim...que os meus verdadeiros parceiros, lado lado, são os miúdos - sei-os na sua maioria sempre prontos a opinar, a chamar o sol para a sala de aula, a confrontar tudo e todos, contra calúnias, injustiças e afins. E é isto que me apaixona nos meios palmos de gente... são mais autênticos, mais reais, mais espontâneos! Deste lado da chuva, calço sempre as meias de criança, coloco o barrete do Peter Pan... e vou sobrevoando a semana, encontrando a riqueza em cada memória.

Soltas as gargalhadas, cá vai o episódio que fez as delícias do meu dia...

Entrou o António, cumprimentou-me e disse: "não tenho TPC, professora... mas ando cá com umas dúvidas..." - respondi-lhe que já o ouvia e continuei ajudando por ali, na minha azáfama do costume, beijando quem acerta, desafiando uns e outros, distribuindo abraços, encorajando, chamando a atenção... Nisto, reparo na carita do António, boca entreaberta, olhos fixos...em mim.

"Então puto lindo, vem ao meu colo e conta-me tudo!" - correu, sentou-se, esfregou o nariz, depois sorriu e bombardeou "tu és uma mulher do antigamente, professora?!".
Gelou-se-me o sangue nas veias... "mulher do antigamente", de modo egoísta pensei por momentos em mim... estaria envelhecida? Seria a minha roupa? O meu cabelo branco que teima em espreitar?...

"De antigamente? De antigamente?.... Oh meu grande malandro..., de antigamente como?!" - tentei disfarçar que pisava terreno de manteiga ou que os meus receios me toldavam a capacidade de interpretação. 

O António, naquele jeito maroto, com cheiro de pão com manteiga, saiu-me do colo e saciou a sagaz curiosidade de todos os que ali estavam: "Sim! Se és uma mulher do antigamente....? Que o meu avô disse-me ontem à noite, quando estávamos a ver umas senhoras a dançar num video clip, que já não havia mulheres como antigamente, que eram umas senhoras... SE-NHO-RAS... devia ser de levarem nas trombas, quando faziam disparates...", e continou..."és do antigamente, não é?..."

Ora bem... levantaram-se duas questões fundamentais, que enunciarei:

1) Se não assumir que sou "do antigamente", depreenderá ele que sou uma debochada, porque sou de agora, já que é assim que ele define a diferença entre as mulheres? 

2) Se, por outro lado, assumir que sou do antigamente, serei uma martirizada dos maus tratos, mas que isso até terá sido bom, dado ter, efectivamente, feito de mim...uma SE-NHO-RA! ?

Decidi, numa fracção de segundos, passar para ele a responsabilidade da resposta, perguntando-lhe o que considerava ele... Seria eu de agora....?

"Professora, o meu avô se te visse ia dizer que tu és como do antigamente, mas as mulheres que ele fala, já são velhotas, a Dona Josefa do café ao pé de mim, coitada... Mas tu não levas porrada, pois não?..." - a verdadeira preocupação vinha ao de cima, a professora como figura respeitada que deve ser, também nunca poderia ser fisicamente violentada, nunca!
Isto, em dia Internacional pela Eliminação da Violência contra Mulheres, como diz o meu pai, caiu que nem ginjas! 

Estabeleceu-se de imediato o foco de toda a intenção educativa...apesar de uma sala de apoio ao estudo estar longe de ser o espaço ideal para o aprofundamento de questões desta natureza. Em boa verdade,  homem, mulher, masculino feminino, não são conceitos estritamente ligados às características anatómicas, nem uma questão meramente genética. Esta dicotomia assenta, fundamentalmente, nos códigos, nas informações, nos estereótipos que são fornecidos nas condicionantes socioculturais em que um indivíduo nasce e se desenvolve. 

E aqui, poderei sempre ter uma palavra a dizer. Sem levar nas trombas.



terça-feira, 22 de novembro de 2011

Dois pés...

Costumo com frequência olhar para a roupa que as "minhas" crianças envergam... não por uma questão estética, de moda, de consulta de particular curiosidade, mas porque vivo paredes meias com quem sofre as agruras da vida, lutando contra a falta de recursos financeiros, onde um par de sapatos assume-se como um bem muito dispendioso.

Hoje choveu muito.

Choveu bem, desse lado da chuva e deste, pois que me dou a escritas sempre que se me chove a alma, alagando os olhos e impondo silêncio ao tempo que insiste em pesar a cada minuto.

Hoje choveu muito... e já ao final da tarde entrou na sala a Maria. Trazia com ela uma sacola, um livro e um lápis. O cabelo muito bem penteado, uma saia de peitilho, muito bem arranjada, muito cheirosa, muito bonita... mas tinha dois pés...

E nesses dois pés arrastava o frio do dia, a chuva do dia, a crise na ordem do dia...

E nesses dois pés gelava-se-lhe a vida, que a lona não aguenta o frio, que a borracha separa-se do resto, que o sorriso era o espelho da vergonha que sentia por estar assim... sussurrou-me: "Professora, tenho os pés frios... hoje preferia nem ter os pés... Ou ter só um. Dois pés... são dois sapatos bons, ou duas botas..." 

Abracei-a, toquei-lhe os tornozelos, verifiquei-lhe a temperatura da testa, voltei a abraçá-la para que pudesse assim aquecê-la no calor da minha indignação, na raiva que assomava o meu corpo, mas sobretudo, para chorar sem que ela visse.

Tens dois pés, Maria, como tens dois olhos lindos, como tens duas mãos cheias de novidades, como tens duas pernas que saltarão muros e fronteiras, como tens uma voz que serve para gritar, como tens sonhos e força e calma e amor. E ainda bem!

"Não fiques triste, professora. amanhã pode fazer sol! Os meus dois pés vão ficar mais quentes."

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Que o sangue aqui conta tão pouco...

"A família é como a varíola: tem-se quando se é criança e fica-se marcado para o resto da vida." 
( Jean-Paul Sartre )


Desde que me conheço, sei-me incluída numa estrutura basilar, aquela que sustenta valores e princípios que me norteiam, aquela que me acompanha a cada passo que dou, aquela que esgrime comigo argumentos, escolhas, caminhos, erros - a família.
Costumo dizer que hoje poderia ser o que quer que fosse, mas não seria nunca a pessoa que sou, sem a minha família. É uma marca. É um emblema. E é, indubitavelmente, a grande paixão.
Deste lado da chuva não pretendo enunciar formatos de famílias, tipos, géneros, modelos ou dinâmicas. Não quero de todo formatar ideias ou definir conceitos, não só porque isso merece uma reflexão profunda, digna de tese de doutoramento, mas porque desejo debruçar-me sobre a temática de modo leve, pouco profundo e tão aberto, que cada qual que por aqui passe, perdido em leituras, possa encontrar um pouco de si.
A família cresce no berço, desenvolve-se à mesa, no colo, nos segredos partilhados, no carinho, no amor – há toda uma sociedade nas pessoas que compõem um grupo de pertença – a família. Cada um assume o seu papel, todos o reconhecem, todos o respeitam. Mas atrevo-me, deste lado da chuva, a dizer mais. Desengane-se quem acredita que tudo depende da mãe ou do pai, apenas, ou que a família se resume a quem tem o sangue de seu sangue.
Existem bases, raízes, que se enterram chão fora até ao infinito, que quebram barreiras e se desenvolvem nas consciências e no coração, que largam saudades, que semeiam inter-ajuda, solidariedade, força, pó, suor e lágrimas. Existem raízes que ganham nomes de tios e tias, de primos, de irmãos... e essas são fortificadas pelo tempo, pelo respeito, pela ternura.
O sangue não goteja nestas raízes. O sangue não tem voz. O coração sim.
Por ele, pelo coração, pelas raízes que a minha família tece, pela capacidade de dar a mão...sou hoje mais irmã, mais tia, mais amiga.
Que o sangue vale pela sua cor.
Que o sangue aqui conta tão pouco.
À nossa!

(...à minha família linda, ao Ricardo... por tudo o que tu sabes.)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Porque a vida acontece agora.

Há questões que se tornam insidiosas, que caminham na sombra, se alojam no fundo da barriga ou do cérebro ou da alma, que vão minando os pedaços de nós, sem que nos apercebamos de imediato. Muitas vezes, sem que nos apercebamos de todo.

Recostada, neste lado da chuva, pretendo lavar a consciência quando relembro minuto a minuto do meu dia, quando releio pequenos gestos e renovo a paixão de me partilhar com fontes de sinceridade, com gente cujos olhos são pedras preciosas, com bocas de sorriso aberto, com mãos meigas. Recostada pretendo acalmar sentimentos de culpa, que de mudos passaram a sussurro, que daqui assumem o grito... 
...e há um que tem estado a ganhar espaço e peso e cor e volume... a Cláudia (chamemos-lhe assim...).

Traz a boca rasgada de tudo, os cabelos em completo desalinho, a roupa manchada com lanche...traz os sonhos marcados em cada gesto, vive os minutos como se fossem esgotar-se no segundo seguinte, não fala, grita. Quando se lhe chama a atenção os olhos ficam quase cinzentos e o sorriso esconde-se algures no escuro de si... e, de passo em passo, a Cláudia revela toda a sua fragilidade, "se não me porto bem, a mãe leva-me para um colégio, para sempre...".

Uma gota de dor, uma farpa no dia, um buraco na calma... Cláudia, adoptada, consciente da sua história, vive hoje a ansiedade de ser melhor, de ser aceite...

E aqui sigo eu, palpando caminho, pesando as horas do dia, procurando entender o que me incomoda, destrinçando a verdade da imaginação, de modo a que cada questão seja revelada do seu tamanho, pesada e tomada em braços. Porque a Cláudia assim o merece. Porque a vida acontece, agora.








quinta-feira, 3 de novembro de 2011

E rasgou-se-me a alma num banco de escola.

A primeira vez que o vi tinha ele 5 anos... franzino, de olhos muito grandes, trazia sempre a boca enfarinhada por causa do pão que comia ao pequeno-almoço. Gostava que lhe abreviasse o nome, não porque não o apreciasse, mas sim porque o considerava grande: Leonardo. - O Leo, para mim e para os amigos e as amigas. Falava muito, adorava jogar à bola e acendia a sala sempre que sorria!

O Leo estava entregue aos cuidados de uma tia, que a mãe tinha ido trabalhar para a Suiça a ver se ganhava mais dinheiro... "tostões" como ele me segredava sempre que me roubava um colo apertado, com beijinhos e festas. Os olhos enormes por vezes inundavam-se de água e afogavam o meu nó na garganta, de tal forma, que o meu coração trepava até à boca e explodia em beijos no Leonardo, prometendo-lhe muitos carinhos e atenção. Eram as saudades... essas malditas.

Um dia a mãe do Leonardo voltou e entre soluços prometeu-me que nunca mais ia para longe trabalhar, que não fazia tão mais dinheiro que se justificasse a distância do seu menino. Assim foi. Quem se afastou fui eu... que o meu caminho foi sendo traçado noutras paragens e o Leo fui vendo em visitas fugazes à sua escola.

Este ano voltei.

Hoje, bateram-me à porta e ouvi perguntar, "professora, posso entrar...venho para o apoio ao estudo...". Era o Leo, agora com dez anos... os mesmos olhos grandes, o mesmo sorriso encantador, o mesmo carinho na voz. Agora quer ser o Leonardo, coisa de rapaz crescido, agora sabe tomar conta de si.

Falámos um pouco, perguntei-lhe pelos resultados escolares, pela forma como se sentia, pela mãe... - o olhar perdeu o brilho e sussurrou-me que a mãe estava muito doente, cancro da mama... mas que ele acreditava ser possível, "não é professora? Tu acreditas como eu, não é?". Não reagi... Voltou o nó na garganta e a revolta com a situação injusta. E ele continuou o seu trabalho enquanto lhe fazia festas no cabelo e nas costas, pesando sobre mim toda a impotência do mundo, a culpa do silêncio e um remoinho de ansiedade que teimava em crescer.

Acabou o estudo e declarou: "Não te canses muito comigo professora, eu faço sempre os trabalhos e só o que não souber mesmo... é que te peço ajuda. Mas sabes, os teus beijinhos...quero-os todos os dias. Como antes, lembras-te?" - e rasgou-se-me a alma.

Lembro.

(Ao Leo e à sua linda mãe... MUITA FORÇA. Eu estarei sempre aí... desse lado da chuva.)