sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Chamou-me Pê-U-Tê-A!!!

Hoje fiz vigília no recreio...precisaram da minha mãozinha e eu, a Rainha do Pátio, como carinhosamente me apelidam, lá fui... Apesar do frio, havia um banco mesmo colocado ao sol, sentei-me e fiquei a deliciar-me com as brincadeiras dos miúdos - as mesmas que já foram as nossas.

A determinada altura uma menina vem a correr ter comigo:

- A Patrícia chamou-me um nome feio... chamou-me Pê-U-Tê-A!!! - Abriu os olhos e fixou-me em jeito de desafio que grita "agora-é-que-quero-ver-o-que-vais-fazer"!

- Qual Patrícia, a pequenina? - Que sim, que lhe havia chamado "aquilo" - então pede-lhe para que venha aqui ter comigo, se faz favor...

A Leonor correu pelo pátio, atravessou o campo, sempre debaixo do meu olho, e quase que trouxe a pequena Patrícia pelo ar, apesar de, ao chegar mesmo pertinho de mim, cada pé pesasse cerca de uma tonelada (isto medindo pela forma como os arrastava e ia olhando para o chão).

- Patrícia, senta-te aqui ao lado da Andrea...- disse-lhe suavemente - então, diz-me lá, o que é que aconteceu que a tua amiga chegou aqui tão triste?... 

- Não fiz nada, só lhe chamei um nome feio...

- Qual?... Um nome feio a uma amiga...? Não me parece nada bem... qual foi?

Sussurrando avançou com o famoso: pê-u-tê-a!

- Ai Patrícia...que não sei se entendi. Essa coisa de soletrarem as palavras... - Isto porque acredito que se os miúdos forem confrontados com as palavras compreendem que o seu poder é grande e os contextos merecem ser respeitados.

Corando, mas corando muito, baixou o queixo...inspirou, ganhou coragem e quase que engoliu a voz, de tanta vergonha:

- Chamei....puta...

Fiz uma pausa, esperei que levantasse os olhos, segurei-lhe na mão e perguntei-lhe se ela sabia o que queria dizer. "Não!...Mas sei que é uma palavra muito feia...", que chamou só uma vez e apenas porque a outra a havia irritado à frente de todos.

- Oh Andrea - interrompeu a Leonor, e com um trejeito de orgulho - eu sei o que quer dizer... 

- Ai sim? Conta lá, então...- a Patrícia endireitou-se no banco e fixou a amiga.

- Puta, quer dizer prostituta!!!

- Hum...e o que é prostituta?

- É uma senhora que anda na rua e recebe dinheiro de homens para ir com eles a sítios onde eles não gostam de ir sozinhos! 

A melhor definição de sempre! A melhor definição de sempre...no penúltimo dia do ano... 

Voltando-me para a Patrícia perguntei-lhe se a amiga seria aquilo, se receberia dinheiro e iria com seja com quem fosse, onde quer que fosse. Respondeu que não e que era "uma parvoíce chapada" o que lhe tinha chamado, pedindo-lhe desculpa logo a seguir.

Afastaram-se de mãos dadas aos saltinhos. Uma com a honra limpa, outra orgulhosa por ter aprendido algo realmente importante.

E eu ali fiquei, ao sol, refrescada pela definição daquele meio palmo de gente.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

À menina dos pés frios...

Hoje esteve muito frio...

Pode ter sido deste lado da chuva, apenas..., mas senti-o de forma tão intensa que viajei no tempo e me recordei de um episódio vivido num contexto escolar, ainda era eu aluna do ensino superior e traçava os primeiros passos neste desafio que é a Educação. Deixo-vos esse pedaço de tempo, essa delícia roubada do baú do esquecimento, esta reflexão triste.

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À menina dos pés frios…

Retive o meu olhar em baixo…não sei por quanto tempo assim estive fazendo força para não chorar, não terá sido muito é certo, mas foi o suficiente para ouvir dentro de mim o grito da incompreensão, aquele que arde, que faz o coração bater mais forte e retira a força de um corpo. Esse.
Tinha saído da sala à procura já nem sei de quê e, a caminho de algum sítio da escola, passei na entrada. Uma miúda, de uns oito anitos, batia com os nós dos dedos na porta envidraçada pedindo para entrar, “tenho frio”, dizia. Estava muito frio, falo daquelas manhãs em que, quem muito cedo tem de sair de casa, encontra o carro coberto de uma fina camada de gelo. Aquela criança ali parada, com os pés sem meias, de sandálias calçadas, espreitava por entre o vidro embaciado pela sua respiração, a azáfama característica de uma escola grande e solicitava que a abrigassem. Retive o passo… e esqueci o que ia fazer, o meu primeiro impulso seria abrir a porta, mas é claro que se escrevo este texto, é porque algo foi diferente, algo confrontou a minha ideia de Escola como porto de abrigo, casa de humanização, com gente e sentimento, Escola de mão aberta para dar, receber, acolher. Algo me fez sentir vergonha de ali estar naquele momento.
 “Tu só entras à uma, são onze e meia…”, falou a voz de quem por direito guarda a entrada, uma mulher grande, de cachecol enrolado à volta do pescoço para que pareça que não o tem, em completo contraste com o frágil corpo da menina. Olhei-a... enquanto ela aplicava a sua sentença, “não podes entrar, põe-te ao sol, logo aqueces!”, rodou a cabeça e continuou a vigia.
E eu ali estive a ver a miúda dos pés frios, a afastar-se rumo ao pátio meio iluminado pelo sol de Inverno. Baixei os olhos, tranquei os lábios e fiz força para não chorar.
Ainda hoje não me lembro porque ali passei, o que ia fazer, porque não estava dentro da sala de aula. Ainda hoje procuro desviar o olhar da menina dos pés frios, ainda hoje interrogo a decisão da mulher grande.
Hoje, penso ser importante encarar aquele momento e reflectir, não para ficar agarrada a considerações nostálgicas do que foi ou do que poderia ter sido, mas para poder fazer a leitura necessária, utilizando a neutralidade que só uma visão temporal nos pode dar. Em todo o caso, só através dela poderemos conhecer melhor o presente e quem sabe, participar num futuro diferente, um futuro sem vergonha ou lágrimas, com crianças de pés e alma aquecidos pela compreensão das pessoas grandes, como eu."
 

domingo, 11 de dezembro de 2011

Não gosto do Natal

"Eu não gosto do Natal!"


E gelou-se a sala.

Mudo ficou quem de direito, continuando a mexer nas suas coisas...até que voltou a declarar:

- É sobre isso que vou escrever o meu texto livre... sobre o Natal..., como não gosto nada do Natal!

Arrisquei a pergunta que todos quereriam fazer, "Mas porquê? De que não gostas tu?" - apoiando os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos, em jeito de quem está verdadeiramente interessada na explicação do pequenote.

Os olhos dele perderam o brilho e com a carita meio encostada ao peito suspirou que não gostava de prendas, gostava de brinquedos, mas de ser ele a comprá-los... "agora aquilo que recebo..., foi assim que descobri que o Pai Natal não existia. Porque professora, todos pedimos as mesmas coisas e só alguns é que as ganham... o Pai Natal não fazia uma coisa destas, não é?"... e continuou, fitando os outros, dizendo-lhes que gostava era das renas... que elas voavam que era um espectáculo!

E abateu-se sobre mim o peso da responsabilidade da gestão da fantasia...e da realidade. Aquela criança não acredita no Pai Natal, mas acredita em renas voadoras? Não gosta do Natal...porque não gosta de receber presentes, já que estes, consigo adivinhar, não deverão corresponder em NADA às expectativas dele, mas serão reflexo das reduzidas possibilidades económicas dos pais. Mais...o conceito de época natalícia que este miúdo domina, está reduzido a uma pobre troca de prendas. Não se pronunciou à partilha com a família, ao aconchego daquela noite, às brincadeiras com primos e primas...não. Isso nem deverá existir. E essa será a maior tristeza de todas. Que em boa verdade, deste lado da chuva, o que recordo das noites de consoada, não são os presentes da meia-noite, nem sei se teria muitos ou poucos, mas sim os momentos em que todos nos reuníamos, em que a lareira deitava um fogo mais vivo, em que existia um brilho diferente no olhar de cada um, em que podíamos brincar todos juntos, em que valores fundamentais como o respeito, a compaixão, a tolerância, a solidariedade, eram vividos, sentidos, revelados.

"Tu gostas das renas?" - perguntei a medo... que sim, que sabia o nome de todas! Que a rena Rudolfo era a mais especial, já que trazia luz na ponta do nariz...e guiava o trenó pela noite fora. Os outros riram-se e alguns atreveram-se a dizer que isso não existia. Virou-se para mim, questionando-me com o olhar...
"Pois eu acredito que tudo isto existe...acredito porque sei que o importante é que alguém acredite e mantenha a fantasia viva. Quanto aos presentes...não sei se são importantes...que eu nem me lembro do que recebi quando era criança...mas lembro-me muito bem de uma noite de Natal ter visto um rasto vermelho no céu... e quase jurar que tinha visto um trenó! Isso lembro-me bem!"... 

Sorriram... o pequeno abriu o caderno e começou a escrever...

 "Sou um menino diferente. Eu não gosto do Natal...mas gosto muito das renas."


P.S. - Não sei se existe o Natal ideal, mas acredito que o verdadeiro Natal possa ser aquele que cada um de nós decida criar como reflexo dos seus valores, desejos e tradições. Mantenhamos assim o Natal como a força interior que simplifica a vida até ao infinito e que, num turbilhão de emoções, impulsiona novos sonhos, novas conquistas, uma sociedade mais íntegra, mais humana, mais feliz.