A chuva tem corrido rios e mares de turbulência feroz. Tem atingido, física ou metaforicamente, gente, muita gente. Gente em forma de pessoas verdadeiras. Daquelas que choram e riem, que se alimentam, ou não, que suam o seu trabalho ou a sua ausência. Pessoas reais. Aquelas que existem...mas que para quem governa o destino deste país são apenas números. Números que não representam famílias ou sacrifícios (a não ser que seja importante que se assumam assim... e se assim for...lá teremos um qualquer importante membro de governo com a cabeça enfiada num boné a cumprimentar...essa gente).
A chuva tem corrido rios e mares e eu tenho estado a observar. Muitas vezes a tentar salvar da água aquela gente que sinto poder ajudar. Vidas. Desafios. Glórias.
Hoje chegou o sol. As crianças ganharam cores de liberdade e vinham mais cheias. Mais abertas. Mais reveladoras.
O André estava na casa de banho com as muletas do Jaime. Estava a ajudar o amigo que partiu uma perna e que tentava lavar as mãos. É claro que umas muletas ali à mercê...é coisa para se aproveitar, tendo em conta que não é todos os dias que se pode usufruir de umas muletas, gozando de plena saúde física!
Muito rodava a muleta e usava ambas para desafiar saltos e metas improváveis estipuladas de si para si.
"Que estás tu a fazer com as muletas, rapaz?" - que estava a ajudar o Jaime!
Lógico...pensei eu, excelente resposta.
"Ele estava era a portar-se mal!" - disse uma voz aguda que entretanto se ajoelhara aos meus pés, à porta da casa de banho dos rapazes e espreitava com os olhos muito abertos.
"Mas ele porta-se mal?" - perguntei...e olhei de imediato para o Jaime que continuava a lavar as mãos como se estivesse numa realidade paralela...e nada daquilo fosse com ele.
"Ui!...Ui, ui!" - disse a voz...cuja dona era uma miúda que tem duas luas no lugar dos olhos...e um sol como sorriso.
Desatei a rir à gargalhada e ela continuou:
"Sabes...este rapaz... Já foi meu namorado. Mas agora...namora com a irmã da minha melhor amiga. Hum hum..."
Olhei para o André...estava todo corado, muito comprometido na sua posição de "ajudante da muleta" e algo envergonhado por estar a ver a sua vida sentimental...ali toda desventrada em plena casa de banho!
Dei um passo no sentido do miúdo, o Jaime levantou o olhar e começou a retirar toalhetes para enxugar as mãos....como se não houvesse amanhã, enquanto o André...corava e espantava-se com aquele disparate de emoção...
"Como se chama a tua namorada, irmã da melhor amiga....aqui da Carolina?"
"Manuela" - quase sussurrou...
"Manuela?!? AI QUE NOME TÃO GIRO! Gosto muito! Boa escolha..."
Foi um alívio...para o André, cuja namorada foi honrada até ao fim do mundo, para o Jaime, cujas mãos ficaram lavadas e enxugadas por um mês ou mais...e para mim, que ganhei o dia com a revelação amorosa e com a simplicidade do momento.
A Carolina? Seguiu o seu caminho que tinha uma corda para ir abanar e saltar todo um abecedário! E "a casa de banho é lá sítio para se estar a conversar?"...