quarta-feira, 24 de setembro de 2014

a pausa do sonho...

"Hoje sonhei contigo..."

Gritou-se-me a alma acesa de emoções. Todo o mundo entrou em pausa... Sou o sonho sonhado de alguém com os olhos negros, a pele escura, os lábios rosados e o cabelo entrançado, cheio, arregalado. O maior sorriso do mundo sonhou-me. Sonhou-nos?...

- Comigo? Ai que bom!!! Então...mas que acontecia nesse teu sonho?

Que ia viver com ela.

- Eu ia viver contigo...ou tu é que virias viver comigo? - retida que eu estava naquela cadeira da superioridade que lhe ofereceria algo mais... A cadeira da materialização. A cadeira que limita a capacidade de ouvir. De ler. De sonhar.

"Não, tu é que vinhas viver comigo."

Envergonhei-me. Disfarcei...segui.

- E que faria então a viver em tua casa?

O abraço honesto. O carinho... "Brincavas comigo! A minha mãe ia trabalhar, como sempre. A minha irmã...ia lá à vida dela e tu brincavas comigo. A tudo! Tu gostas de brincar!!! E sabes!"

O meu abraço escondeu a felicidade de ser aceite no espaço do sonho. No desejo de ser brincadeira inteira. Na partilha do mundo ideal. O que é habitado só por crianças.

"Hoje tentas sonhar comigo?"

- Sim...hoje vou adormecer a pensar em ti.

A chuva sorriu.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Na minha Caixa de Correio, o sol.

Ontem roubaram-me aos tempos da chuva seca. Do nó na garganta. Dos momentos presos nas reflexões penosas, graves, perdidas em mim. 

Abri a caixa de correio. Daquele espaço saiu a surpresa do sorriso da Catarina, os olhos pestanudos e escuros. Saíram as escadas do Beco da Cardosa, em Alfama, as roupas no estendal, o sol a espreitar pelas arcadas. Dos amantes que roubam beijos nos recantos, do Santo António de Lisboa, do peso da vida, da subida, da inevitável descida. A urgência...a paz.

Ontem a Catarina resgatou-me do silêncio mudo. Trouxe-me até aqui.

Abri a caixa de correio e lá estava o postal prometido. Aquele que transporta o carinho que navega nas redes de quem se cruza virtualmente e cuja a imagem grita todo um mundo de estórias e segredos que não cabem em cento e quarenta caracteres. Nem em mil. Nem em longas conversas numa varanda qualquer. Nem em feiras ou em mudanças, entre colchões e sofás. Nem em posts que se partilham ou em marcas da vida que gravam a mãe.

Ontem a Kooka trouxe-me a alegria de ser eu e a vontade de a tomar nos braços, apertá-la com toda a minha verdade e segredar-lhe:

Também GOSTO MUITO DE TI.

Obrigada, menina. Tu és especial.






segunda-feira, 21 de abril de 2014

O incómodo silêncio...

Calei-me durante um tempo.

Aquele tempo ao qual se confere reflexão ou observação. 

Não. Não foi nada disso...aconteceu o vazio.

Silêncio.

Foi isso que existiu no tempo em que me roubei das palavras deste lado da chuva. Um imenso silêncio perturbador, triste, quase abandonado. 

Deixei que a prosa se prendesse na garganta e que as poucas lágrimas que vertesse se evaporassem no calor da minha pele. A injustiça sobre as inocentes parceiras de luta, de partilha, de amizade...aglutinaram-se e as famílias sufocadas chegam a mim de braços caídos, cansadas, desiludidas, esquartejadas, feridas.

Não preciso que me justifiquem os déficit, PIB, FMI. Esses não respiram, não têm mãos e olhos e boca e chuva dos olhos que cai, de vergonha, desistindo de tudo.

"A Catarina tem uma caixinha onde guardou frango...o frango do almoço, Andrea...e depois foi repetir!", contou-me em sussurro.

A sensibilidade de quem me segredou isto, um coração de seis anos, com  a clareza de quem observa algo secreto, delicado, susceptível de embaraço, foi excepcional.

Dei-lhe um beijo e pisquei-lhe o olho, um obrigada que entre nós serve como pacto e confiança, selando a confissão como única e intransmissível.

Sim...conversei com a Catarina, respeitando o seu inicial silêncio, repetindo que não haveria qualquer problema, que não estava a roubar e que eu só queria ajudar, se a ela lhe conviesse...

Servia para levar para casa...e assim "posso jantar, coordenadora, assim também já dou aos meus irmãos...".

Justifiquem-me agora os déficit, PIB, FMI...

Ficará o meu incómodo silêncio.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ar de quem-não-está-para-brincadeiras-com-putos e outros "desmanchos".

Há dias que quebram a chuva...que a repartem em muitos mil pingos, que a dividem, que a secam, que a regam de lágrimas.

Há dias que nos recordam as mil razões dos nossos caminhos, das nossas opções, de cada uma das nossas escolhas. Dias únicos, dir-se-ia...

Desde há um tempo que a minha presença na sala de aula é menos constante. Hoje pediram-me que orientasse o Manuel nos TPC, que ele andava "desalvorado", "sem tino", "irrequieto", "prejudicando todos os colegas". 

Entrou na minha sala a medo...com os olhos negros brilhantes, um bocadinho assustado, com ar de quem poderia desatar num choro profundo ou cair inanimado no chão, por suster a respiração. Ar de susto. Ar de bicho perdido.

Fiz então eu, o meu ar. O ar sério...ar de quem-não-está-para-brincadeiras-com-putos!

"O senhor sente-se aí e tire os TPC, se faz favor..." - disse tudo sem olhar para ele e entretanto fui-lhe dando os indicadores todos que estaria muito aborrecida com as suas atitudes, ou apenas as atitudes que o trariam até ao gabinete, nomeadamente o indicador que todos reconhecem: tratá-los por "senhor".

Devagar retirou os trabalhos e receoso foi avançando que tinha contas para fazer.

Sentei-me ao seu lado...e o ambiente foi sendo aliviado. Trabalhou afincadamente e resolveu as contas com calma, da minha parte fui dando as dicas, trabalhando o cálculo mental...e tudo fluiu.

Despachou-se antes dos colegas que trabalhavam na sala ao lado. Percebeu isso quando lhe disse com um sorriso..."Vai ver se é preciso mais alguma coisa e se não for...vais para a sala, brincar!".

Espantou-se e acabou por me confessar que costumava demorar muito para terminar...e até esteve com medo de vir para o meu lado.

- Amanhã posso vir para aqui? Aliás...posso vir todos os dias para aqui? Por favooooooorrrr....

Correu na minha direcção, puxou-me com força e assaltou-me a face com um beijo doce.

- Gosto mesmo de ti. Até quando me tratas por senhor. Não penses que assustas assim tanto.

Na saída....volta-se-me para trás e solta-se em desafio...

- Desmancha-te agora, que eu bem sei que também gostas de mim!


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A vida como ela é...ou deveria de ser.

Hoje caiu-me no colo uma notícia.
Parecia quase como uma mensagem de esperança, uma forma de dizer...ainda se consegue, tu também estás no bom caminho, não desistas de lutar pelo que acreditas.

Sai desse lado da chuva. Fala.

Acordei com uma lufada de ar fresco, com uma mão cheia de valores humanos, pedagógicos, de relação, que raramente vejo reflectidos nas paredes de uma escola. E raramente é muito pouco. 

Aqui está uma prova, clara e simples, que aprender transcende a sua própria definição. É mais do que adquirir conhecimentos, é mais do que desenvolver competências, é mais do que somar saberes.

E ensinar, também.

Nada nem ninguém vive isoladamente. Cada Escola, cada Professor, cada aluno, cada contexto educativo, estará sempre ligado ao que acontece à sua volta, dependerá de uma qualquer convergência, tenderá a seguir a moda que se agiganta. É a vida como ela é...ou deveria de ser.

Resta-me uma última palavra ao meu colega professor, ao meu par que nunca conheci mas por quem tenho profunda admiração, ao Ali Mohammadian, muito obrigada.

Não vos prendo por mais tempo. Emocionem-se...vistam a camisola do que acreditam. Lutem.



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O trabalho

"Que tens tu?"

Estava triste o miúdo, encostado à parede parecia perdido em reflexões...

Levantou o olhar, encolheu os ombros, sorriu de lado e abanou a cabeça. - Reconheço em cada canto a profundeza dos sentimentos tristes de quem não consegue entender o mundo complexo dos adultos, que deste lado da chuva nunca um príncipe pequeno de um mundo distante foi esquecido...ou abandonado.

"Eh miúdo giro, que tens tu?...", última tentativa...mas se ele andava por ali a recostar-se...de certo que me quereria algo.

"Estou preocupado porque a avó diz que a mãe também deve perder emprego, o pai já não trabalha há muito tempo, os tios também não... A avó Bela diz que não há trabalho...mas eu nem noto isso, que que cada vez trago mais trabalhos de casa e a professora quando se zanga, também diz que a minha turma é uma trabalheira... A ti vejo-te a andar de um lado para o outro...às vezes a correr,cá para mim...aqui é que está o trabalhinho todo e os do governo não sabem! Não é, Andrea?"

O resto da conversa fica presa nas gotas de chuva e nas partilhas iguais que em seguida proporcionaram. O meu pequeno príncipe precisava de colo, de falar, de ouvir e de um mimo especial, nosso.

Mas deu trabalho...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Dia de limpezas

Bateu à porta e pediu para entrar... Anuí e sorri-lhe como faço sempre. Correu na minha direcção e abraçou-me, levantou a cabeça e disse:

- Sabes o papel dos piolhos? Aquele que enviaste para casa...sabes?

No dia anterior havia escrito uma comunicação para as famílias, no sentido de as alertar para a limpeza da cabeça das crianças, tendo em conta os casos de piolhos e umas queixas levadas a cabo por alguns encarregados de educação. Deste lado da chuva tratam-se as coisas pelos nomes....e isto de andarmos a utilizar as denominações científicas para tocar num assunto tão real e tão conhecido, aborrece-me! PIOLHOS! É assim o nome que toda a gente conhece, ataca tudo o que é cabeça...mais limpa ou menos limpa...e tem de ser tratado! Claro que não redigi o texto assim...mas seria fundamental que  se lhe desse a importância desejada. Muita!

Disse-lhe que sim, que me lembrava perfeitamente do papel...

- Pois...com este cabelinho raso, piolhos não tenho, tenho é cera nos ouvidos. Mas a mãe não tem coragem para limpá-los sem cotonetes e a avó nem vê bem. E eu pensei que tu pudesses ajudar-me. Olha!

Virou-se e mostrou-me as orelhas, sendo que com o dedito ia puxando e repuxando para que confirmasse o estado em que aquilo se apresentava...

- Podes limpar-me isto? Senão ainda me gozam mais na escola...e eu acho que me engano muitas vezes nos ditados por não ouvir bem a professora a dizer as palavras.

Abraço forte, um sorriso...e expliquei-lhe que não ia mexer com cotonetes, mas que lhe limpava tudo com umas toalhitas especiais que tinha comigo.

- Ah, Andrea...que bom!!! É que hoje vou dar fé de tudo!