Há momentos deste lado da chuva que são puro deleite! Quer porque o calor humano faz um brilharete, a vida ganha novos contornos e se descomplica até ao infinito, quer pela capacidade de estar atenta no momento certo, aproveitando cada vírgula, pausa, respiração, pensamento ou frase, que se ergue entre mãos sujas de brilhantes crianças.
Hoje, entre a elaboração de um exercício sobre eixos de simetria e a leitura de números por classes e ordens (sim...ninguém se lembrará disto...mas a ganilhada tem de sabê-lo na ponta da língua!), uma miúda beijou outra no pescoço em jeito de agradecimento por uma pequena ajuda. Acrescentou: "és uma fofa!" - ao que a outra replicou que fufa não era...até namorava o Artur que andava noutra escola e logo se prontificou a retirar um bilhetinho que ele lhe enviara pelo Miguel.
Parou tudo... fez-se um enorme silêncio e eu remeti-me à postura de quem não está a ver o que se passa, nem sonha, nem ouviu nada...
A menina agradecida, a Rita, nem sabia o que lhe estava a acontecer, nem sequer adivinhava porque teria ela que ler as promessas de amor endereçadas à outra, a Joana. Esta, por fim... mais velhinha, mais malandra, já dominava claramente o calão e, por isso, necessitava de limpar a sua consciência que "quem não sente, não é filho de boa gente!" - disse-o esfregando o nariz.
O resto..., bem o resto estava a observar atentamente, até porque nunca se haviam metidos em tal embrulhada, quase em jeito novelístico, a roçar o melodrama - apesar de se sentirem mergulhados na total ignorância...que havia palavreado que não entendiam, de todo!
Saiu-lhe do bolso a jura de amor, e os olhos da maioria brilhou, encheu-se a sala de rubor e o orgulho de Joana fazia-la sentir-se importante - ainda que a história da ofensa tivesse passado para segundo plano, ou que a Rita já nem se lembrasse da diferença entre os vocábulos utilizados - Joana era a rapariga do momento! Devagar foram-se chegando perto do pequeno pedaço de papel, encardido mas com um desenho pintado a canetas de feltro...pé ante pé, soltaram risinhos e o Hugo exclamou "mas não há nenhum coração desenhado...assim não é de amor!". Zangada, ofendida, encostou no peito o seu segredo mais badalado e retorquiu: "o MEU Artur não desenha bem corações...mas eu gosto dele na mesma!".
Estava assumido. Era o meu momento...fingi que só agora ouvira as suas vozes e que nem os teria visto levantarem-se do lugar. Perguntei-lhes que se passava, qual o motivo de tanto alarido...diz-me a pequena Rita... "Professora, a Joana tem um namorado que não sabe desenhar corações, mas não faz mal...não fazemos todos coisas bem, não é? Eu ainda não sei bem ler os números grandes...e tu gostas de mim, na mesma!" - E aquele sorriso desdentado, de quem ainda palmilha a inocência e se perde na honestidade dos dias, conseguiu segurar no seu punho a essência de todo o momento e apresentá-lo a todos como uma lição de vida.
Sim Rita, ninguém é perfeito, todos possuímos fragilidades, e eu gosto muito de ti!