Costumo com frequência olhar para a roupa que as "minhas" crianças envergam... não por uma questão estética, de moda, de consulta de particular curiosidade, mas porque vivo paredes meias com quem sofre as agruras da vida, lutando contra a falta de recursos financeiros, onde um par de sapatos assume-se como um bem muito dispendioso.
Hoje choveu muito.
Choveu bem, desse lado da chuva e deste, pois que me dou a escritas sempre que se me chove a alma, alagando os olhos e impondo silêncio ao tempo que insiste em pesar a cada minuto.
Hoje choveu muito... e já ao final da tarde entrou na sala a Maria. Trazia com ela uma sacola, um livro e um lápis. O cabelo muito bem penteado, uma saia de peitilho, muito bem arranjada, muito cheirosa, muito bonita... mas tinha dois pés...
E nesses dois pés arrastava o frio do dia, a chuva do dia, a crise na ordem do dia...
E nesses dois pés gelava-se-lhe a vida, que a lona não aguenta o frio, que a borracha separa-se do resto, que o sorriso era o espelho da vergonha que sentia por estar assim... sussurrou-me: "Professora, tenho os pés frios... hoje preferia nem ter os pés... Ou ter só um. Dois pés... são dois sapatos bons, ou duas botas..."
Abracei-a, toquei-lhe os tornozelos, verifiquei-lhe a temperatura da testa, voltei a abraçá-la para que pudesse assim aquecê-la no calor da minha indignação, na raiva que assomava o meu corpo, mas sobretudo, para chorar sem que ela visse.
Tens dois pés, Maria, como tens dois olhos lindos, como tens duas mãos cheias de novidades, como tens duas pernas que saltarão muros e fronteiras, como tens uma voz que serve para gritar, como tens sonhos e força e calma e amor. E ainda bem!
"Não fiques triste, professora. amanhã pode fazer sol! Os meus dois pés vão ficar mais quentes."
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