terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sexta-feira é dia de Frango Assado

Tem passado o tempo, o dia, a noite...a chuva teima em cair, mesmo quando não inunda ruas, inunda gentes e corações, ansiedades. Abre rios de emoção e enche praças de luta, sede de vitória, devaneios de revoltas mil.

Ontem houve aqui uma manifestação. Se não foi ontem...foi um dia destes. Mas ontem o coração encheu-se-me de saudades do tempo de reivindicar, de se poder apresentar soluções, de gritar o que não está bem e de exigir. Ontem lembrei-me da Escola Democrática. Crítica. Interventiva. Da Escola que reconhece a rudeza dos caminhos, a dureza do trabalho, a continuidade da discussão, o trabalho num todo. O voto. O respeito.

Ontem houve uma manifestação, aqui, no pátio da Escola. Pedia-se frango assado para sexta-feira. Que há sexta é dia de frango assado, batatas fritas e arroz branco. Com ou sem salada. Promessas de recusa em comer, uma espécie de "greve de fome!", gritava a mais agitada de todas. Recebi-os...não todos, mas três. Pedi-lhes que me expusessem as questões...

"Não são muitas, Andrea, é só uma! Sexta-feira...é dia de frango assado. Não é dia de outra comida. É o nosso dia favorito, todos adoramos!" - mexia na barriga e rodava a língua...enquanto os outros dois reiteravam com os olhos brilhantes. 

Sugeri então que fizessem um pedido por escrito, da melhor forma que conseguissem...e eu levaria o assunto à Direcção, com toda a pompa e circunstância que a situação exigia! Anuíram. Que aquele assunto não era coisa para se brincar, as sextas-feiras mexem com a vida de uma criança!

"Mas isto assim ainda nos vai dar trabalho. Isto das manifestações e das greves tem muito que se lhe diga, já estou mesmo a ver...", rematou a Laura, que pensava com toda a certeza que aquilo eram "favas contadas", assim que falassem comigo.

Dez minutos passados e tinha uma folha de Caderno Diário, com um coração no canto...(soube que tinha sido a Catarina a exigir que se colocasse lá esse desenho, para ser meiguinha comigo...) e uma exigência simples:

"Senhores da Direcção, os meninos e as meninas querem frango assado à sexta-feira. Gostamos mais assim. As batatas fritas também podem estar lá. Se não houver salada, não faz mal."

E assim foi... nessa semana e durante uma série delas. Não se quis cá greves de fome. Gente pequena cheia de razão e de vontade de se manifestar. 

Ontem houve aqui uma manifestação. Mas ontem... há muito tempo.  

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

...às vezes...

...às vezes não é dia de dizer muito. 

Não é dia de dar ou receber...não é dia de se ousar ouvir. Às vezes, esse dia prolonga-se pelos tempos e volta, mais forte, mais primeiro, mais perto. 

Às vezes é dia de parar. É dia de deixar a chuva cair e atravessar os caminhos molhados com os pés descalços e a alma nua. 

Às vezes perco-me nas reflexões e acordo com a boca muda e a alma seca. Às vezes nem sei onde parar, onde cair de joelhos fincados na terra...onde perder o bater da vida, onde chorar. Às vezes a revolta seca fontes, a injustiça fecha portas, olhos, sentimentos, razões. O amor.

...às vezes...

...hoje é o dia de todas as outras vezes.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

As pessoas crescidas fazem-no tão pouco.

"Onde vais?...Estás cansado de saber que não deverias estar aqui a esta hora...incrível!.. ... ... (...)"


E deverei ter continuado numa prelecção imensa...sobre a consciência dos deveres e direitos e de como já estamos no final do ano lectivo, de que os tempos de hábitos nos ensinam a estar mais atentos e conscientes, que nunca deveríamos estar sempre a cometer o mesmo erro, e isto e aquilo e assim.

Deste lado da chuva por vezes esqueço-me de ouvir, essa poderosa arma que serve para clarificar posições, saber escutar, esse dom, saber o outro, essa estratégia... No meio de tanta tormenta passada, ou dobrada - não fôssemos nós portugueses de alma e coração - dizia, no meio de tanta aventura gozada ontem (o dia do meu aniversário), hoje, cometi o erro de não prestar a devida atenção à criança que ali estava à minha frente.

Perante uma pausa do meu discurso, sussurrou, quase a medo...:

- Fui colocar na minha mochila, a circular para entregar à mãe... 

O tempo parou. O miúdo, todo suado de jogar futebol no recreio...com os joelhos meio esfolados e as mãos sujas de tanto apanhar a bola, driblou-me num passo de mágica e, em jeito de brinca na areia, rematou certeiro.

O tempo parou e quase secou todas as fontes de chuva.

"Desculpa, António... Não sabia que já tinham a circular para guardar...."

- Não faz mal - sorriu, virando as costas e dirigindo-se para o campo, ainda espreitou de novo.

"Desculpa, meu querido..." .

Ele parou. Como o tempo. Como a água da chuva. Como as gotas que inundam os espaços secos de emoção. Ele parou, virou-se para mim, deu um passo para se chegar mais perto, correu...abraçou-me e disse, apertando-me com toda a sua força:

- Então? Já pediu desculpa... e olhe que as pessoas crescidas fazem-no tão pouco.

E o sol brilhou mais forte.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Posso pintar um graffiti?...

Este texto não reproduz nada que tivesse acontecido este ano... ou no ano anterior a esse. Esta estória passou-se há tempos, mas de quando em vez assombra os meus dias. Na maioria das vezes faz-me sorrir, outras, traduz-se numa saudade imensa e a chuva da alma cai-me dos olhos em jeito de água salgada.

Era um rapaz, quase como todos os outros que por estes corredores passam..., tinha um nome diferente, um tom de pele com sabor a chocolate de leite, uma boca carnuda, uns olhos pestanudos, grandes, vivos. Quando se ria...tudo se iluminava, mas quando refilava, quando se aborrecia, o que acontecia muito mais do que se poderia prever, tudo nele era explosivo. Os olhos ganhavam um tom cinza, o queixo colava ao peito, a voz era gutural seca agressiva. Os braços cruzavam-se em frente do corpo, como se de um escudo se tratassem e, invariavelmente, a alma chovia-se-lhe pelas janelas do corpo... Pudesse eu fazer um desenho desses momentos que ele estaria rodeado de água por todos os lados. Uma ilha de emoções. 

Como eu. Uma ilha de emoções...mas sem o outro lado da chuva.

Um dia cheguei à sala e disse que íamos fazer umas pinturas! Comecei então a explicar, enquanto preparávamos o espaço, que gostava que explorassem as cores, o corpo, que pintassem a alma, caso considerassem que esta merecia ser pintada, que falassem com a tinta, as mãos, a cara, o cabelo. Mas havia regras... Ninguém podia pintar casas, nuvens, o sol, a relva, o céu, flores, árvores... Ou pelo menos, em boa verdade, "ninguém podia pintar aquelas coisas todas da maneira como sempre pintavam". Tinham de encontrar outro traço, outra textura, nova comunicação.

A emoção fervilhava, sentia-se, via-se. 

"Podemos pintar com as mãos?", que sim... "Posso pintar um graffiti?c"

Podes, pensei..., "podes, sim...mas repara...que graffiti vem de grafito, que é uma pintura na parede..., aqui vamos usar o papel, as mesas, tinta de água..."

"Mas posso desenhar mesmo o que eu quiser, como se fosse um 'gajo' dos grafitties?"

Sorri. Olhei para ele e disse-lhe que podia ser ele próprio e desenhar o que bem quisesse...desde que se sentisse bem...

Começou por pintar tudo negro, disse-me que aquilo era a noite...depois colocou um ponto branco e contou-me que era assim que via a lua, com as mãos cheias de amarelo ia pintalgando o preto da base, chamou-me e segredou-me aquilo eram os sonhos que se separavam dele quando tinha medo. Pegou num pincel cheio de tinta vermelha...começou a chorar e sussurrando:

- Isto é o sangue que eu vi...antes de fugir. Era muito.

Ao trabalho, chamou-lhe saudade.

Abracei-o e beijei-lhe o cabelo...milhares de vezes, nem sei contar quantas. Desde esse dia, sempre que se aborrecia...pedia-me para pintar. Cada traço, um pedaço de vida.

Hoje, nem sei que fará...mas espero bem que continue a ser um 'gajo' que fala com a cor, que cheire a chocolate de leite, que tenha as pestanas cheias de emoção e que o amarelo dos seus sonhos, nunca mais se separe dele. 




quinta-feira, 18 de julho de 2013

Não se está à espera...

Era um grupo enorme...discutia-se a vida.

Aproximei-me devagar...como quem gosta de ler as conversas da gente pequena que é, regra geral, grande nos sentimentos, na justeza, na clarificação.

"O João gosta dela...mas ela não gosta dele. E ele é giro!"

"Ela é paneleira....só pode..."

Toda a gente deitou as mãos à boca e os pés tremeram de ansiedade, muito por me verem ali.

- O que é "paneleira"? - perguntei em jeito de provocação...

As caras coravam...e o cheiro a manteiga que ainda tinham nas mãos tomava conta daquele espaço de corredor, o autêntico "corredor da má língua" que as línguas mais aguçadas adoram explorar.

- Então...? - invocava eu, com o ar de quem não sabe mesmo nada sobre qualquer assunto que ao coração e ao corpo diga respeito.

"Paneleira é uma mulher que faz panelas....acho eu...", sussurrou cheia de medo a mais pequenina que ali estava...e que trazia calçadas umas socas de tacão para ficar do tamanho da amiga.

- Hum...pode ser, pode... mas então, quem é que faz panelas aqui no ATL?

Risos e mais risos...muitas gargalhadas coloridas e a cara mais redonda que eu já vi, toda salpicada de sardas, disse-me em tom de malícia...

"Oh Andrea..., paneleira é uma rapariga que gosta de outra rapariga... Não sabias?"

- Hum.........não não sabia. Sei sim que é uma rapariga que faz panelas ou lava-as... mas... ainda assim...se fosse uma rapariga que gosta de raparigas, onde estava o problema? Isso é que eu não entendo...

Encolheram os ombros... e o António desabafou enfim... "porque não se está à espera, só isso... Não se está à espera..."

E, de facto, essa é a razão... não é socialmente expectável e aceite. Até que os tempos mudem, até que as mentalidades evoluam.

O que aconteceu depois guardo para mim...que deste lado da chuva gosto de reservar algumas delícias para vos contar mais tarde.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A poesia

Escondida na chuva de hoje...remexi no baú das memórias e encontrei um grito de apoio que um dia teci...

Foi um apelo, foi um abraço...enviado a Mia Couto...aquando da sua Carta Aberta ao Presidente Bush... 

A carta do Mia...podem encontrá-la aqui, a minha...partilho-a agora.


"Meu caro Mia Couto

Permita que o trate assim. Afinal já nos conhecemos há muito tempo, isto é, eu a si… E através de si e dos seus livros, as suas estórias, vou revisitando a terra que um dia também foi minha, essa terra pobre, também ameaçada sem se saber porquê, talvez hoje tão ameaçada como outra terra qualquer.
Queria agradecer-lhe por ter escrito, a carta que escreveu, ao sr. Bush e sobretudo e principalmente porque o fez de forma aberta o que permitiu que eu e muitas outras pessoas a lêssemos e, assim, dela tivéssemos conhecimento. Pela minha parte, eu senti que a carta também me era dirigida, como se de alguma forma aquela guerra também dependesse da minha opinião, que não dei, de um gesto meu, que não fiz, de um movimento, que não esbocei, de uma vontade, que não exprimi.
Claro que todos nós temos consciência que não era a sua carta, nem a minha, nem muitas outras que provavelmente foram escritas e endereçadas a quem deveriam ser, que iriam impedir que esta guerra anunciada se fizesse. Claro que todos nós sabíamos que nem o Conselho de Segurança das Nações Unidas, nem a Comunidade Internacional no seu conjunto, teriam força para a evitar. Claro que todos nós, que não temos os meios tecnológicos e os altos recursos técnicos como impeditivos das relações humanas, todos nós que vemos em qualquer pessoa o nosso semelhante e não percebemos em nome de que bandeira, ideologia ou critério uma morte ou um mutilado é menos ou mais importante do que outra morte ou mutilado, todos nós, dizia eu, prevíamos assustadoramente que os exemplos de dor, sofrimento e destruição não seriam considerados como preço suficientemente alto para a travar. Mas ainda assim, e apesar de toda essa tomada de consciência, a sua carta, meu caro Mia Couto, comoveu-me.
Comoveu-me e despertou em mim esta vontade enorme de lhe responder. Pareceu-me que agora sim valia a pena gritar, juntar a minha voz a outra voz, o meu grito a outro grito.
Não vejo nela qualquer anti-americanismo primário, como agora já se diz, nem nenhum interesse escondido em defender qualquer Saddam. Não vislumbro nela quaisquer vestígios de objectivos políticos ou visibilidade pessoal, qualquer gosto por um protagonismo oportunista nem o ridículo de qualquer falsa modéstia.
O que eu vejo é o atrevimento de um povo modesto, humilde, mas com a coragem de colocar, claramente, o dedo nas feridas. É o universo de verdades que fica exposto. É a forma tão simples de destroçar o argumento bélico. É a demonstração clara da demência que se apodera dos poderes. É o carácter pedagógico de toda a mensagem.
Meu caro Mia Couto,
agora que a ONU está pelas ruas da amargura, a Comunidade Internacional consolidou a sua inoperância, de que forma é que os povos de todos os países poderão usar a sua arma de construção massiva? Agora que a lei da selva está cada vez mais legitimada como é que os povos poderão derrubar os ditadores, onde se inclui o sr. Bush, os que continuam a existir, os que teimam ainda em usar a força para se manterem nos pedestais que para si mesmos criaram?
A história mostra-nos quem nela fica e os chefes guerreiros abundam nela e enchem-nos de orgulho. Ghandi só houve um e foi assassinado.
Para mim ainda resta uma hipótese, só uma. Deixo-a consigo porque é escritor, porque é um escritor de um país pobre, porque teve um sonho, como outro sonhador também já tivera, e através dele resolveu enfrentar o Mundo inteiro, porque me emocionou e me abriu os pulmões para gritar, por isso e porque confio em si, eu digo-lhe: a poesia! Ela tem que ser ensinada nos primeiros fôlegos de vida, com o primeiro leite materno, a partir dos primeiros bancos da escola. A todas as crianças do mundo.


Andrea Diegues" 


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Leonor...

Leonor,

Escrevo-te sem diminutivos, da mesma forma como sou, sem atalhos, sem esconderijos, da mesma forma como te admiro, enorme, lutadora, ensinante.

Conheci-te através do teu pai e, apesar de nunca te ter tocado, quase consigo saber o teu cheiro, a suavidade da tua pele, a beleza que tu encerras. Conheci-te através dos gritos de força, de ajuda, de amor. Conheci-te através de mim...porque eu própria sou mãe...conheci-te através do desejo de sucesso.

Gostei de ti no imediato. Como se gosta de todas as coisas pequenas que movem mundos grandes, que encimam batalhas fantásticas, que se assumem como líderes de vida.

Gostei de te ver...escondida no meu mundo...gostei de pensar em ti como uma vitória de todos.

Hoje, Leonor..., escrevo-te para tapar o buraco que se abriu na tristeza de te saber partir...porque também levas um pouco de mim, da minha ansiedade, da minha chuva, da minha vontade. 

Escrevo-te para acalmar a água que inunda a minha noite...e para gritar-te, do universo de pessoas que arrastas contigo, da alegria de saber que existem pais como os teus, vivendo com o corpo num coração, cerrando punhos para o futuro, lutando contra a saudade feroz.

Escrevo-te sem diminutivos..., da mesma forma como te reconheço audaz, maravilhosa, força de vida. Força de alma. Força de nós. Força de sempre.

Leonor...neste coração que é o meu...vives, sempre. 

Até breve.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A casa de banho, as partilhas, ajudas e outros acontecimentos!"

A chuva tem corrido rios e mares de turbulência feroz. Tem atingido, física ou metaforicamente, gente, muita gente. Gente em forma de pessoas verdadeiras. Daquelas que choram e riem, que se alimentam, ou não, que suam o seu trabalho ou a sua ausência. Pessoas reais. Aquelas que existem...mas que para quem governa o destino deste país são apenas números. Números que não representam famílias ou sacrifícios (a não ser que seja importante que se assumam assim... e se assim for...lá teremos um qualquer importante membro de governo com a cabeça enfiada num boné a cumprimentar...essa gente).

A chuva tem corrido rios e mares e eu tenho estado a observar. Muitas vezes a tentar salvar da água aquela gente que sinto poder ajudar. Vidas. Desafios. Glórias.

Hoje chegou o sol. As crianças ganharam cores de liberdade e vinham mais cheias. Mais abertas. Mais reveladoras.

O André estava na casa de banho com as muletas do Jaime. Estava a ajudar o amigo que partiu uma perna e que tentava lavar as mãos. É claro que umas muletas ali à mercê...é coisa para se aproveitar, tendo em conta que não é todos os dias que se pode usufruir de umas muletas, gozando de plena saúde física!

Muito rodava a muleta e usava ambas para desafiar saltos e metas improváveis estipuladas de si para si.

"Que estás tu a fazer com as muletas, rapaz?" - que estava a ajudar o Jaime!

Lógico...pensei eu, excelente resposta.

"Ele estava era a portar-se mal!" - disse uma voz aguda que entretanto se ajoelhara aos meus pés, à porta da casa de banho dos rapazes e espreitava com os olhos muito abertos.

"Mas ele porta-se mal?" - perguntei...e olhei de imediato para o Jaime que continuava a lavar as mãos como se estivesse numa realidade paralela...e nada daquilo fosse com ele.

"Ui!...Ui, ui!" - disse a voz...cuja dona era uma miúda que tem duas luas no lugar dos olhos...e um sol como sorriso.

Desatei a rir à gargalhada e ela continuou:

"Sabes...este rapaz... Já foi meu namorado. Mas agora...namora com a irmã da minha melhor amiga. Hum hum..."

Olhei para o André...estava todo corado, muito comprometido na sua posição de "ajudante da muleta" e algo envergonhado por estar a ver a sua vida sentimental...ali toda desventrada em plena casa de banho!

Dei um passo no sentido do miúdo, o Jaime levantou o olhar e começou a retirar toalhetes para enxugar as mãos....como se não houvesse amanhã, enquanto o André...corava e espantava-se com aquele disparate de emoção...

"Como se chama a tua namorada, irmã da melhor amiga....aqui da Carolina?"

"Manuela" - quase sussurrou...

"Manuela?!? AI QUE NOME TÃO GIRO! Gosto muito! Boa escolha..."

Foi um alívio...para o André, cuja namorada foi honrada até ao fim do mundo, para o Jaime, cujas mãos ficaram lavadas e enxugadas por um mês ou mais...e para mim, que ganhei o dia com a revelação amorosa e com a simplicidade do momento.

A Carolina? Seguiu o seu caminho que tinha uma corda para ir abanar e saltar todo um abecedário! E "a casa de banho é lá sítio para se estar a conversar?"...


domingo, 5 de maio de 2013

Se a virem por aí,...ponham-se de pé e expludam numa salva de palmas.

Há paixões que se iniciam no primeiro grito de vida e perduram...até ao infinito. Não são os momentos de prova, de provação, mas a incondicionalidade do amor, o caminho que se leva de mão dadas, o modo como se orientam escolhas ou se as colocam em relação. Há pessoas mágicas e magias que se transformam em pessoas. Com a minha mãe é assim.

Não existem palavras suficientes que a descrevam...ou pelo menos que a elogiem quanto baste, que a recompensem por cada sacrifício, que a abracem nos momentos em que se reconhece o valor que tem. Não existem sorrisos que preencham os espaços vazios, nem agradecimentos que encham os dias de sol, de chuva, de trovoada, de vento. Não consigo encontrar o caminho para descrever cada traço da sua cara e cada brilho do olhar, cada palavra de alento, cada gesto de apoio. Por vezes questiono a sua força interminável e a capacidade de abnegação, o sulco das lágrimas de emoção e a gargalhada solta. Outras vezes...limito-me a pensar: É a minha mãe! É ela e só isto basta.

Poderia enunciar aqui um sem número de pequenos detalhes que a ligam a mim...ou que me ligam a ela, mas em cada momento sei-me a sorrir e a pensar nos milhares de segredos e partilhas que não quero escrever, que pretendo guardar para sempre naqueles que são os recursos pessoais e invioláveis que cada uma de nós tem para si, o coração e a memória. Cada momento com a minha mãe...é uma memória vitalizante. Única. Nossa.

Não existem palavras que a descrevam...mas posso dizer-vos que sempre se assumiu como guerreira, lutadora, educadora, amiga, médica, curandeira, enfermeira, palhaça, animadora, confidente, advogada, decoradora, arquitecta, jardineira, cozinheira, costureira, bailarina, actriz, motorista, malabarista, trapezista. 


É a minha mãe, só isto basta. Se a virem por aí, ...ponham-se de pé e expludam numa salva de palmas. 

O beijo, dou-lho eu.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Tenho tantas saudades tuas...

O João não vinha à escola fazia algum tempo...havia sido escolha dos pais, da psicóloga e até da equipa pedagógica, tendo em conta os recentes acontecimentos que denotavam alguma violência e poderiam colocar em risco outros actores do processo de aprendizagem, social e escolar. Foi uma decisão consensual, discutida e reflectida...e seguia no sentido dos superiores interesses da criança, que deste lado da chuva acompanhei de forma atenta e preocupada...não fosse qualquer catraio o foco de quase toda a minha atenção. Traçou-se um plano...preparou-se o regresso do João...e no dia marcado, chegou.
 
Trazia o dourado dos cabelos ainda mais dourado e o azul dos olhos ainda mais azul. Dou de barato que fossem as minhas saudades, mas a falta que lhe senti fez com que o meu olhar se prendesse nos seus caracóis, no sorriso rasgado e na forma como disfarça a felicidade de se saber acarinhado. Vinha calmo e sabia-lo saudoso, cheio de vontade de voltar, pronto.
 
Foi recebido da forma acordada e sempre controlado pela equipa, nomeadamente nas suas acções na relação com os outros...criando-se espaços próprios de interacção, sempre seguido por todos os adultos, não fosse o João agir de forma violenta, prejudicando a sua reintegração.
 
Passaram-se três dias...e o espaço de convívio do João resumia-se a todo um enquadramento estruturado e planeado, rigorosamente seguido, onde existia pouco espaço para a espontaneidade da chuva de afectos que se costuma proporcionar.
 
No último dia o João chegou...só ainda estava a Rita na sala, para além das responsáveis. Ele entrou, sorriu, correu para o tapete, como era seu hábito, e esperou pelo momento de partilha que aquele pedaço de pano proporciona. Não estava previsto que o João iniciasse assim o seu dia, mas a Educadora...não teve coragem de o retirar do tapete e continuou a calorosa recepção a todos os outros.

De repente corria uma copiosa chuva de lágrimas dos olhos da Rita, que soluçava de forma tão forte que toda a gente olhou para o João, receando o pior...mas ali permanecia ele...sossegado fixando, muito intrigado, a menina.

"Que se passa, Rita?"

A menina acentuou o choro...curvou-se para a frente, apoiou os braços nos joelhos e a carinha nas mãos...

"Queres falar, Rita?....Chora que nós esperamos..."

Levantou a cabeça, olhou para a Educadora e disse:

- Tenho tantas saudades do João... - virou-se para o miúdo - Tenho tantas saudades tuas...

E a água da chuva inundou a sala!

Dos olhos rasos de emoção, corriam rios de amizade pura, capazes de ultrapassar todas as regras e dinâmicas que as equipas de gente crescida possam desenhar, para todas as crianças do mundo.

 Inundou-se a sala com a palavra mais pura, falada a partir do coração e gritada no abraço que a Rita queria dar ao João.

Inundou-se a sala de reforços positivos, de amor, de amizade, de carinho.

Inundou-se o João com tanto de cada um de nós...que ele parecia do tamanho de todos os sonhos que encerram a sua pequena mão. O coração acusou o toque e o rubor das faces esboçou uma gargalhada!

E a água da chuva uniu-se para esbater o muro de medo que nós adultos tão bem erguemos...e revelar que a famosa frase de Quintana, "a amizade é um amor que nunca morre", adoça todo o bolo dos afectos.

Em boa verdade te segredo, meu querido João..., também tinha saudades tuas.



 

terça-feira, 19 de março de 2013

O meu pai é o Alexandre Diegues

Hoje é dia de S. José... Logo, decidiu-se ser Dia do Pai.

Gosto. Gosto muito.

Até porque deste lado da chuva, se me prendo em reflexões, me dedico a amar incondicionalmente a vida, se me desdobro em solidariedade, em compreensão, em capacidade de revolta, em defesa de todos os outros que considero mais frágeis..., se luto de olhos fechados e de coração aberto, devo-o ao meu PAI.

Aquele que me soube dar a mão no momento certo, que soube abraçar e silenciar o aperto, que me soube chamar à razão quando cegamente eu avançava sem freio, derrubando quase tudo. O meu PAI, que traz a alma cheia de paixão pura e que nos olhos traduz a água cristalina dos trilhos da vida, conhece o sabor do suor, da derrota, da perda, da saudade. 

É um contador de estórias de vida, de amor, de guerra, de aventuras, de desilusões. Sabe as pausas que as palavras merecem e conhece a linha ténue que divide a fantasia de tudo o que é sensorial, emocional, real, estrutural. Discursa sobre castelos, princesas presas numa torre, tesouros escondidos nas paredes de sua casa e sobre a moeda que se prendeu onde não devia, sobre o "Sachão" - que lhe arranca um sorriso de criança -, ou os banhos no Sabor, os lobos caçados...as vendas na rua de trás, as fugas com o sabão à cabeça. Quando canta uma estória, as frases surgem e as temáticas viajam, as gargalhadas sucedem-se e os olhos rasam de água.

Gosto. Gosto muito.

E sei-o. Como sei de todos os sacrifícios que fez para que eu chegasse até aqui. Cada lágrima, cada noite sem dormir, cada poupança. E Sei-o. Não conhecesse eu o olhar de desafio, de aperto, de gargalhada. Não soubesse eu de cor a forma como me acompanha deste lado da chuva e comigo arrepia caminhos de pão. Enternecida, a cada dia, vejo-o amadurecer, ganhar mais doçura, tal os figos que são brindados com o sol e soltam um pingo de mel ou as amoras que se colhem na berma da estrada, doces, escuras. Não lhe adivinho o pensamento...mas leio cada cabelo branco como uma conquista vitoriosa e, orgulhosamente, grito ao mundo que sou sua filha, tal como me dizia que fizesse sempre. E fiz. Confiante, dizia para mim...:

- O meu PAI é o Alexandre Diegues. 


sexta-feira, 15 de março de 2013

A culpa...a angústia de a conhecer.

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Sofro. Que isto de estar do lado errado do sol, sorvendo pingos de chuva e sugando saudades múltiplas pode tornar-nos menos sagazes, menos expeditas, menos coerentes, menos atentas. Passam-se os dias, renovam-se memórias...e turvam-se-me as ideias, como se deste lado a chuva fosse quente, formando uma nuvem de fumo espesso, assim que toca o chão. Hoje acordei.

"A Maria João está a ligar para o 112!", rompeu sala dentro um dos meus colaboradores, trazendo pela mão a pequenita, franzina e assustada miúda. Olhava o chão, envergonhada, com duas rosetas enormes...tal era o tamanho do constrangimento.

Para o 112, perguntava eu...retorcendo o sobrolho para que a gravidade fosse tida em conta. Pedi-lhe que se chegasse a mim...mantive-me sentada para que igualássemos tamanhos, puxei-a suavemente encostando-a ao meu ombro e retomei:

- Para o 112, Maria João? Tu sabes a gravidade disso?... Não se usa essa linha telefónica sem mais nem menos... - E lá  iniciei uma "brilhante" prelecção, sem que a miúda conseguisse levantar o olhar do chão...ou as rosetas se esbatessem! - Que tu repara - continuava eu - que enquanto estamos a ocupar uma linha destas com uma brincadeira, alguma coisa de muito grave pode estar a acontecer!

"Eu liguei ontem..." - sussurrou...

E eu continuei, numa surdez imensa, em torno do meu umbigo e da vontade que tinha em lhe explicar tudo. Ou quase tudo. Quando acabei perguntei-lhe se tinha entendido...ela fez sinal que sim, dei-lhe um beijo na testa e deixei-a sair do meu gabinete.

Estupidamente convencida estava que teria sido fantástica na metodologia, na forma como me expressei, no modo como a chamei à razão, no gesto, no carinho. Cega. 

Uma hora depois chegou a mãe da Maria João, vinha ferida num pé...coxeava muito mais na alma e trazia um mundo de sofrimento com ela. Abracei-a e ajudei-a a sentar-se. 

"O meu homem...pu-lo fora de casa, bateu com o portão do quintal no meu pé...fiquei sem a ponta de um dedo... Não fosse a Maria João ter ligado para o 112..." ... (Deixei de ouvir. O meu batimento cardíaco acelerou e na minha garganta nasceu um nó de nojo e raiva que continuamente gritava e revia a frase sussurrada "Eu liguei ontem....". Como deixei que uma parede de chuva densa se tivesse erguido à minha volta? Como não consegui ler os sinais de fumo, na voz daquela menina? Como fui capaz de ser tão egoísta ao ponto de me adormecer em palavras ocas, quando o que ela queria era contar-me o terror que havia vivido na noite anterior?) 

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Que agora nem consigo resistir ao sentimento de culpa. Nem quero. Porque já dizia Séneca, "nenhum culpado se livra do castigo".


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Mestre, e falares-me da saudade...?


Far-me-ás muita falta. Aquela falta que faz tudo o que é por demais importante para nós. O sorriso, a partilha, a cumplicidade. Coisas. Todas as que tínhamos só no olhar...outras que ficavam na lágrima presa pela emoção de conseguirmos sentir o peso das palavras do outro. Conhecermos o outro. Sabermos o outro. Lutas. Vitórias. Revoltas. Coisas nossas. Coisas que ousámos partilhar...ou simplesmente deixámos suspensas no fio de tudo o que se reconhece como verdade absoluta, indivisível, insubstituível, impronunciável.

Far-me-á muita falta o abraço e a forma como nos agarrávamos à vida. Às coisas boas da vida, à gargalhada solta, à tua voz e como ouvir-te poderia significar uma década de aventuras. Houvera tempo suficiente, que as horas galgavam espaços e correr-se-ia quase todos os assuntos. Velhos, recentes, gastos, renovados, cheios de vernáculo, de malícia, de humor revelado palmo a palmo. Assuntos e temas que viajavam ao sabor da música natural da cadência da palavra.

Far-me-á falta olhar-te e admirar-te como o pai atento que foste. Preocupado, sensível, humano, tolerante.

Far-me-á falta dizer-te da importância que tens para mim, do quanto te gosto, das saudades que sentia. Do teu silêncio. Do cheiro do teu charuto. Escrevi-te muitas vezes sobre o orgulho em ser tua amiga, em saber-te ao meu alcance, bebendo sempre da minha atenção.

Far-me-ás muita falta, Galiza...porque és único na tua forma de estar, de ser...porque nem sei se te escreva no presente ou no pretérito perfeito, ou no imperfeito...ou acredite simplesmente, para sempre, que estás aqui, a ler-me, a ouvir-me, a abraçar-me, a sussurrar-me todas as coisas do mundo que em amizade verdadeira se constroem...

Far-me-ás muita falta, mestre.
Até sempre.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

...sabia a frango assado...

Debaixo de chuva apetecia-me escrever-vos sobre o tema "Grândola Vila Morena"...sobre o peso da história, sobre a palavra rescrita na revolta das gentes. Mas não escreverei. Nem sobre esse maravilhoso tema do Zeca, nem sobre outro qualquer pingo de revolução que nos empurre para a inevitável reflexão em torno das políticas que se vêm assumindo, do estado social, da espiral recessiva..., da forma como se abandonaram os princípios norteadores definidos na declaração de Jacques Delors (1996), no âmbito do relatório para a UNESCO da Comissão internacional sobre Educação para o século XXI, intitulado: Educação, um Tesouro a Descobrir. Não vos vou chorar os quatro pilares para a educação, como se de ouro se tratassem...nem vou relembrar a importância de se compreender que NÃO É ESTA A EDUCAÇÃO QUE DEVERÍAMOS TER TRAZIDO para o novo milénio. Ainda assim...entre a força da água que a chuva arrasta brindo-vos com um tesouro.

"Andrea, dei um beijo na boca do meu namorado..." - e os meus olhos brilharam perante tal revelação! Como teria sido, tentei saber, sem que a Sofia se apercebesse o quão divertida estava eu.

"Sabia a frango assado! Porque ele não lavou os dentes e tem este" - abriu a boca e apontou para um molar - "a abanar!"

Ri-me perguntei-lhe se aquele seria o primeiro beijo...ou se era namorado único...que nestas idades os amores vêm e vão da mesma forma com que se acaba um pacote de pastilhas elásticas.

"Na boca é o primeiro...mas nunca fizemos...aquilo..."

Aquilo?!? Aquilo seria...exactamente o quê? Arrisquei...

"Então...aquilo o quê?"

"Aquilo que os mais velhos fazem...de se agarrarem contra a parede. nem sei se é o sexo...e não digas à minha mãe que te disse isto, mas sei que ficam uma data de tempo naquilo! Já vi a minha vizinha da frente. E isso, disse ao Rafael que não fazia. Mas ele também nem sabia o que é...coitado, não tem vizinhas malucas!" 

Acenei com a cabeça...e a minha gargalhada explodia...sem que o eco se fizesse sentir... e a Sofia rematou: "Agora vou brincar ao Mata...que a minha amiga quer andar com o Rafael...mas eu comprei-lhe um chocolate e ela disse que preferia muito mais! Oh...e eu também...que agora só volto a dar beijos na boca quando no refeitório for uma comida que eu goste muito!"

Deu-me um abraço lambuzado...rasgou-se-me um sorriso de luz e do alto dos seus sete anos vividos intensamente, reproduzindo modelos que ainda nem compreendeu...fugiu acenando.

E assim segue, silencioso, o currículo oculto no pátio da escola. Até que alguém o veja. Até que alguém o entenda. Até que alguém o legisle. 


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Diante dos nossos olhos...

O recreio costuma encher-se de brincadeiras várias. O barulho entra-se-nos alma dentro e lá permanece se quisermos ouvir com o coração os gritos da imaginação. 
As crianças vivem os seus pedaços de vida, minuto a minuto, e a cada passo arrastam a imaginação por entre saltos, gargalhadas, gritos, corridas, abraços e partilhas. Não entende cada coisa quem verdadeiramente quer, mas quem realmente pode...ou quem ainda consegue lembrar-se da magia de ser-se criança.

Deste lado da chuva costumo observar o momento do recreio...que me é oferecido, como se de um tesouro se tratasse. Costumo mesmo pensar que de um lado ficará a observação razoável de quem já palmilhou alguma vida e sobre a qual reflecte a todo o instante e, de outro, a capacidade de fantasiar em aberto, livre, despretensiosamente, vivendo castelos de sonhos, cavalgando nas costas de heróis, morrendo mil vezes, vivendo outras mil. Entre um e outro situa-se aquela a que chamo de zona de conforto, que me permite viajar sem ser vista, imaginar sem receios e esconder-me em refúgio reflexivo...tudo em meia hora de acontecimentos.


Hoje voltei a espreitar o recreio... Mas hoje estava cheio de alegria de adultos que brincavam com as crianças. E dançavam. E sorriam. E reconheciam-lhes a fantasia. Diante dos nossos olhos erguia-se um mundo colorido, magnífico, vivo, cheio!

Hoje é o momento em que os adultos conseguem ver tudo aquilo que as crianças imaginam durante o ano inteiro. Apenas porque hoje elas vêm cobertas de adereços que lhes limitam a imaginação, mas orientam cada "pessoa crescida", que com elas interage, no sentido de as reconhecer encarceradas na fantasia de todos os dias.

Hoje a Luana disse: "Vês professora Joaquina? Eu hoje sou a princesa do outro dia, aquela que te falei que andava a brincar ao faz-de-conta... Agora já sabes quem sou...". A "pessoa crescida" olhou, sorriu...e rematou a conversa alegando que "com este vestido já reconheço a princesa...que linda! Mas sem nada, não estava mesmo a ver...como querias que soubesse? Entendes?". A miúda olhou-a...e continuou a corrida entre a gritaria do pátio.

Eu...fechei a janela e pisquei-lhe o olho, num gesto de cumplicidade assinado para sempre...no preciso momento da passagem à fantasia de se ser, quem se quiser.

A eterna luta. De um lado a imaginação do tudo, com nada, do outro o entendimento do nada, com tudo.

Jean-Jacques Rousseau disse um dia que "a infância tem as suas próprias maneiras de ver, pensar e sentir. Nada mais insensato que pretender substituí-las pelas nossas." Antes compreendê-las, antes deixá-las existir, antes observá-las em silêncio. 

Tão somente...antes lembrar de como se apresentava o mundo, quando éramos crianças.


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

há dias que silenciam as gotas...

"O presente não é um passado em potência, ele é o momento da escolha e da acção." 

(Simone de Beauvoir)


Há já algum tempo que não me tenho a escrever. Vejo-me quase sempre espantada com o mundo, admirada com o passar do tempo, voltada para dentro de mim. 

Há já algum tempo que adivinho as dores que cruzam os dias...nem todos os dias, mas especialmente aqueles em que nos vivemos iguais, abraçamos iguais, amamos diferentes.

Há já algum tempo que a chuva não corria como agora...a tal modo,  que me atrevo a explicar, acreditasse eu em celestiais acontecimentos, a dor dos anjos, as lágrimas dos condenados, a saudade de todos a quem já se destinou à eternidade.

Mas há dias que silenciam as gotas... 

Silenciam-se devagar...e o sol rompe com a melancolia dos dias à chuva e atira-me contra a dureza das paredes erguidas a partir do quotidiano de todos os que arrastam a vida, a partir do suor do corpo. Contam-se as gotas uma a uma. As estórias que surgem aos molhos, as agruras que caiam sobre o chão húmido e se enterram na lama seca.

"O meu filho...nem sempre foi assim." Que houve alturas em que estaria por  se definir. Que a escolha teria sido sua. Que não sabia se havia escolhido o melhor.

E abriram-se as fontes do coração...e correram as lágrimas de quem chove por dentro segredos guardados na vida da alma. 

Contive a respiração e aguardei a continuação...como quando nos contam a profanação um acto. Único. Decisivo. Abafado.

"Nasceu rapaz e rapariga, nasceu e era os dois. Escolhi um...nem sei se escolhi bem. Acho que deveria ter esperado."

E o passado fundiu-se com o presente, o futuro assumiu contornos macabros e a ansiedade matava as horas de incómodos mil... 

Sossegaram-se-me as palavras e o som gritou abafado a dor de uma mãe desfeita em chuva que atirada para o outro lado, pesa o que pesa, mede o que mede.

O abraço dei-lho no meu silêncio...o resto, guardo-o para mim. Aqui partilho a dor primeira. A reflexão da escolha. O passado, presente e futuro, na água em forma de dor, na lágrima da gota de chuva, espelhada no coração de mãe.





quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Quase que poderia falar de tudo...

Ouve-se por aí, entre pingos de chuva, que o sr. Presidente da República falou ao país.

Não me debruçarei sobre isto, já que tão pouco haverá a dizer...a escrever...ou a reflectir. Outra vez a contra-dança dos infelizes, o insucesso de muitos e o esforço de poucos, que se traduzirá no abuso de milhares.

Sossegadamente observo o tímido arranque do ano.

O aumento dos preços e a forma como cada um de nós quase paga para ir trabalhar. O medo. Sim, o medo que assola a nossa casa durante a noite, quando os sonhos nem chegam no momento de dormir e as contas de subtrair nos invadem o descanso.

A tímida tristeza. Aquela que todos nós tentamos disfarçar no momento em que se deseja bom ano aos transeuntes. A mesma a quem sussurramos palavras de ordem, mordiscadas pela revolta e pela assumpção de uma culpa encapuçada. Imposta.

A solidariedade crescente. Aquela que querem revestir de assistencialismo, a tal que querem matar e dar-lhe ênfase de caridade, remetendo-a para o acesso limitado, escondendo-a entre escalões e classes e capacidades e dinheiros. Mas aquela que não conseguirão calar. Que a solidariedade é a procura e o respeito da dignidade individual, já o gritava Du Nouy, reclamando mesmo que não existira outra via. E gritarei eu, nem que me obriguem a gatinhar para fora da chuva, rastejando na terra ardente.

As crianças.

As crianças, repito. Que delas e por elas quase poderia falar de tudo...

As crianças. Aquelas que sorvem com os olhos e o coração da consciência que é a sua inocência tudo o que a sociedade lhes oferece. Mesmo que seja um presente envenenado.

As crianças... Que delas e por elas quase poderia falar de tudo.

E mais já nem consigo escrever.