segunda-feira, 29 de julho de 2013

As pessoas crescidas fazem-no tão pouco.

"Onde vais?...Estás cansado de saber que não deverias estar aqui a esta hora...incrível!.. ... ... (...)"


E deverei ter continuado numa prelecção imensa...sobre a consciência dos deveres e direitos e de como já estamos no final do ano lectivo, de que os tempos de hábitos nos ensinam a estar mais atentos e conscientes, que nunca deveríamos estar sempre a cometer o mesmo erro, e isto e aquilo e assim.

Deste lado da chuva por vezes esqueço-me de ouvir, essa poderosa arma que serve para clarificar posições, saber escutar, esse dom, saber o outro, essa estratégia... No meio de tanta tormenta passada, ou dobrada - não fôssemos nós portugueses de alma e coração - dizia, no meio de tanta aventura gozada ontem (o dia do meu aniversário), hoje, cometi o erro de não prestar a devida atenção à criança que ali estava à minha frente.

Perante uma pausa do meu discurso, sussurrou, quase a medo...:

- Fui colocar na minha mochila, a circular para entregar à mãe... 

O tempo parou. O miúdo, todo suado de jogar futebol no recreio...com os joelhos meio esfolados e as mãos sujas de tanto apanhar a bola, driblou-me num passo de mágica e, em jeito de brinca na areia, rematou certeiro.

O tempo parou e quase secou todas as fontes de chuva.

"Desculpa, António... Não sabia que já tinham a circular para guardar...."

- Não faz mal - sorriu, virando as costas e dirigindo-se para o campo, ainda espreitou de novo.

"Desculpa, meu querido..." .

Ele parou. Como o tempo. Como a água da chuva. Como as gotas que inundam os espaços secos de emoção. Ele parou, virou-se para mim, deu um passo para se chegar mais perto, correu...abraçou-me e disse, apertando-me com toda a sua força:

- Então? Já pediu desculpa... e olhe que as pessoas crescidas fazem-no tão pouco.

E o sol brilhou mais forte.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Posso pintar um graffiti?...

Este texto não reproduz nada que tivesse acontecido este ano... ou no ano anterior a esse. Esta estória passou-se há tempos, mas de quando em vez assombra os meus dias. Na maioria das vezes faz-me sorrir, outras, traduz-se numa saudade imensa e a chuva da alma cai-me dos olhos em jeito de água salgada.

Era um rapaz, quase como todos os outros que por estes corredores passam..., tinha um nome diferente, um tom de pele com sabor a chocolate de leite, uma boca carnuda, uns olhos pestanudos, grandes, vivos. Quando se ria...tudo se iluminava, mas quando refilava, quando se aborrecia, o que acontecia muito mais do que se poderia prever, tudo nele era explosivo. Os olhos ganhavam um tom cinza, o queixo colava ao peito, a voz era gutural seca agressiva. Os braços cruzavam-se em frente do corpo, como se de um escudo se tratassem e, invariavelmente, a alma chovia-se-lhe pelas janelas do corpo... Pudesse eu fazer um desenho desses momentos que ele estaria rodeado de água por todos os lados. Uma ilha de emoções. 

Como eu. Uma ilha de emoções...mas sem o outro lado da chuva.

Um dia cheguei à sala e disse que íamos fazer umas pinturas! Comecei então a explicar, enquanto preparávamos o espaço, que gostava que explorassem as cores, o corpo, que pintassem a alma, caso considerassem que esta merecia ser pintada, que falassem com a tinta, as mãos, a cara, o cabelo. Mas havia regras... Ninguém podia pintar casas, nuvens, o sol, a relva, o céu, flores, árvores... Ou pelo menos, em boa verdade, "ninguém podia pintar aquelas coisas todas da maneira como sempre pintavam". Tinham de encontrar outro traço, outra textura, nova comunicação.

A emoção fervilhava, sentia-se, via-se. 

"Podemos pintar com as mãos?", que sim... "Posso pintar um graffiti?c"

Podes, pensei..., "podes, sim...mas repara...que graffiti vem de grafito, que é uma pintura na parede..., aqui vamos usar o papel, as mesas, tinta de água..."

"Mas posso desenhar mesmo o que eu quiser, como se fosse um 'gajo' dos grafitties?"

Sorri. Olhei para ele e disse-lhe que podia ser ele próprio e desenhar o que bem quisesse...desde que se sentisse bem...

Começou por pintar tudo negro, disse-me que aquilo era a noite...depois colocou um ponto branco e contou-me que era assim que via a lua, com as mãos cheias de amarelo ia pintalgando o preto da base, chamou-me e segredou-me aquilo eram os sonhos que se separavam dele quando tinha medo. Pegou num pincel cheio de tinta vermelha...começou a chorar e sussurrando:

- Isto é o sangue que eu vi...antes de fugir. Era muito.

Ao trabalho, chamou-lhe saudade.

Abracei-o e beijei-lhe o cabelo...milhares de vezes, nem sei contar quantas. Desde esse dia, sempre que se aborrecia...pedia-me para pintar. Cada traço, um pedaço de vida.

Hoje, nem sei que fará...mas espero bem que continue a ser um 'gajo' que fala com a cor, que cheire a chocolate de leite, que tenha as pestanas cheias de emoção e que o amarelo dos seus sonhos, nunca mais se separe dele. 




quinta-feira, 18 de julho de 2013

Não se está à espera...

Era um grupo enorme...discutia-se a vida.

Aproximei-me devagar...como quem gosta de ler as conversas da gente pequena que é, regra geral, grande nos sentimentos, na justeza, na clarificação.

"O João gosta dela...mas ela não gosta dele. E ele é giro!"

"Ela é paneleira....só pode..."

Toda a gente deitou as mãos à boca e os pés tremeram de ansiedade, muito por me verem ali.

- O que é "paneleira"? - perguntei em jeito de provocação...

As caras coravam...e o cheiro a manteiga que ainda tinham nas mãos tomava conta daquele espaço de corredor, o autêntico "corredor da má língua" que as línguas mais aguçadas adoram explorar.

- Então...? - invocava eu, com o ar de quem não sabe mesmo nada sobre qualquer assunto que ao coração e ao corpo diga respeito.

"Paneleira é uma mulher que faz panelas....acho eu...", sussurrou cheia de medo a mais pequenina que ali estava...e que trazia calçadas umas socas de tacão para ficar do tamanho da amiga.

- Hum...pode ser, pode... mas então, quem é que faz panelas aqui no ATL?

Risos e mais risos...muitas gargalhadas coloridas e a cara mais redonda que eu já vi, toda salpicada de sardas, disse-me em tom de malícia...

"Oh Andrea..., paneleira é uma rapariga que gosta de outra rapariga... Não sabias?"

- Hum.........não não sabia. Sei sim que é uma rapariga que faz panelas ou lava-as... mas... ainda assim...se fosse uma rapariga que gosta de raparigas, onde estava o problema? Isso é que eu não entendo...

Encolheram os ombros... e o António desabafou enfim... "porque não se está à espera, só isso... Não se está à espera..."

E, de facto, essa é a razão... não é socialmente expectável e aceite. Até que os tempos mudem, até que as mentalidades evoluam.

O que aconteceu depois guardo para mim...que deste lado da chuva gosto de reservar algumas delícias para vos contar mais tarde.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A poesia

Escondida na chuva de hoje...remexi no baú das memórias e encontrei um grito de apoio que um dia teci...

Foi um apelo, foi um abraço...enviado a Mia Couto...aquando da sua Carta Aberta ao Presidente Bush... 

A carta do Mia...podem encontrá-la aqui, a minha...partilho-a agora.


"Meu caro Mia Couto

Permita que o trate assim. Afinal já nos conhecemos há muito tempo, isto é, eu a si… E através de si e dos seus livros, as suas estórias, vou revisitando a terra que um dia também foi minha, essa terra pobre, também ameaçada sem se saber porquê, talvez hoje tão ameaçada como outra terra qualquer.
Queria agradecer-lhe por ter escrito, a carta que escreveu, ao sr. Bush e sobretudo e principalmente porque o fez de forma aberta o que permitiu que eu e muitas outras pessoas a lêssemos e, assim, dela tivéssemos conhecimento. Pela minha parte, eu senti que a carta também me era dirigida, como se de alguma forma aquela guerra também dependesse da minha opinião, que não dei, de um gesto meu, que não fiz, de um movimento, que não esbocei, de uma vontade, que não exprimi.
Claro que todos nós temos consciência que não era a sua carta, nem a minha, nem muitas outras que provavelmente foram escritas e endereçadas a quem deveriam ser, que iriam impedir que esta guerra anunciada se fizesse. Claro que todos nós sabíamos que nem o Conselho de Segurança das Nações Unidas, nem a Comunidade Internacional no seu conjunto, teriam força para a evitar. Claro que todos nós, que não temos os meios tecnológicos e os altos recursos técnicos como impeditivos das relações humanas, todos nós que vemos em qualquer pessoa o nosso semelhante e não percebemos em nome de que bandeira, ideologia ou critério uma morte ou um mutilado é menos ou mais importante do que outra morte ou mutilado, todos nós, dizia eu, prevíamos assustadoramente que os exemplos de dor, sofrimento e destruição não seriam considerados como preço suficientemente alto para a travar. Mas ainda assim, e apesar de toda essa tomada de consciência, a sua carta, meu caro Mia Couto, comoveu-me.
Comoveu-me e despertou em mim esta vontade enorme de lhe responder. Pareceu-me que agora sim valia a pena gritar, juntar a minha voz a outra voz, o meu grito a outro grito.
Não vejo nela qualquer anti-americanismo primário, como agora já se diz, nem nenhum interesse escondido em defender qualquer Saddam. Não vislumbro nela quaisquer vestígios de objectivos políticos ou visibilidade pessoal, qualquer gosto por um protagonismo oportunista nem o ridículo de qualquer falsa modéstia.
O que eu vejo é o atrevimento de um povo modesto, humilde, mas com a coragem de colocar, claramente, o dedo nas feridas. É o universo de verdades que fica exposto. É a forma tão simples de destroçar o argumento bélico. É a demonstração clara da demência que se apodera dos poderes. É o carácter pedagógico de toda a mensagem.
Meu caro Mia Couto,
agora que a ONU está pelas ruas da amargura, a Comunidade Internacional consolidou a sua inoperância, de que forma é que os povos de todos os países poderão usar a sua arma de construção massiva? Agora que a lei da selva está cada vez mais legitimada como é que os povos poderão derrubar os ditadores, onde se inclui o sr. Bush, os que continuam a existir, os que teimam ainda em usar a força para se manterem nos pedestais que para si mesmos criaram?
A história mostra-nos quem nela fica e os chefes guerreiros abundam nela e enchem-nos de orgulho. Ghandi só houve um e foi assassinado.
Para mim ainda resta uma hipótese, só uma. Deixo-a consigo porque é escritor, porque é um escritor de um país pobre, porque teve um sonho, como outro sonhador também já tivera, e através dele resolveu enfrentar o Mundo inteiro, porque me emocionou e me abriu os pulmões para gritar, por isso e porque confio em si, eu digo-lhe: a poesia! Ela tem que ser ensinada nos primeiros fôlegos de vida, com o primeiro leite materno, a partir dos primeiros bancos da escola. A todas as crianças do mundo.


Andrea Diegues"