quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Da surpresa...

Ontem soube-me a muito, sim...quase como reza o poeta.

Irromperam sala dentro aos empurrões e aos gritinhos, que teria de ir lá abaixo...que a Joana estava a chorar. "E muito, digo-te já!".

Lá fui...acalmando os ânimos que isto de ser ambulância em hora de intervalo tem que se lhe diga.

Acerquei-me da garota, que já tinha enxugado as lágrimas, mas que quando me viu decidiu prolongar o "sofrimento" imenso, esgotado num drama quotidiano de um qualquer intervalo escolar.

"Oh querida...que se passou?". Encolhidos os ombros...deu-se a sequela dos abraços. Dos beijinhos.

"Estou cheia de vergonha...podemos falar noutro sítio?" - alarme, meu. Alto, se é para falar em privado...há que afastar as "comadres e compadres" que nem personagens novelescas vão rodeando a protagonista da estória.

"Muito bem, gente linda...agora vou conversar com a Joana, vão lá brincar. Obrigada!". Seguimos caminho.

"Podes trazer a Mariana, ela pode explicar melhor se eu começar a chorar". Que sim, chamei a amiga.

No gabinete, sentadas lado a lado...começaram num queixume atirando toda a responsabilidade daquele estado de alma para um grupo de três.

Uma atiçaria. Os outros ririam.

"Mas que se passou concretamente?", ia eu passando o lenço pela cara.

A Mariana, despachada, muito arisca e sempre de resposta pronta, esclareceu-me de imediato:

- Olha, Andrea, coisas parvas e mal educadas. Imagina só...que não só poderiam ficar por uma ofensa...que avançaram duas! Uma - abriu os olhos - é...que a Joana era prostituta, mas pior...é que diziam que ela é da avenida...das vinhetas mal batidas!!! 

A gargalhada que senti invadir-me o corpo foi tal...que pensei que o meu coração pararia a travá-la.

Perguntei-lhes se entendiam o que seria...já que eu não estava a perceber.

"Oh...entender não entendemos...mas quando a coisa é mal feita, mal batida, Andrea, não há-de ser coisa boa!!!".


quarta-feira, 29 de julho de 2015

O vazio de um todo.

A morte de um filho não é natural. Nunca o será...por mais que o mundo se justifique, as chuvas parem de cair, o sol arrede terras de argumentos. 

A morte de um filho é o princípio de outra dimensão. De um outro estado de alma. De sobrevivência. 

Ontem vi a mãe de um filho que partiu.

E vi nela o que vejo sempre nas mulheres cujo infortúnio é este. O vazio. O vazio de um todo.

Como se do corpo de mulher existisse NADA. Nada de vida, nada de ar, nada de sangue, nada de carne, nada de entranhas, de cheiros, de sabores. Só dor. Só vazio. Só silêncio. E água.

Trazia o corpo pendurado entre si mesmo, na sombra da mulher forte, viva, lutadora que foi. Na sombra da alegria que transbordava, do grito aberto, da gargalhada solta.

Trazia o corpo dilacerado. Os olhos inundados de gritos mudos. O peito esburacado. E água.

Ofereceu-me a água dos olhos como se de chuva se tratasse e eu deixei-me molhar num abraço. 

Aquele abraço de mães cúmplices. Aquele que por mais força que se faça, por mais dentes que se cerrem, por mais palavras que se sussurrem, não se arrepia o vazio, não se alicerça a dor, não se regressa da dimensão nova.

O imenso silêncio. 

E assim continuou...pendurada entre si mesmo, sorvendo da mágoa imensa o olhar caído, arrastando consigo um luto...o primeiro passo de uma outra vida.










quarta-feira, 22 de abril de 2015

Coração a metade...

E hoje levaram a Maria.

Traquina, melada e meiga. Levaram-na depois de muita avaliação, de muita pergunta e resposta, de muita indecisão. E hoje foi o dia escolhido. Surpreendidos que fomos com tudo. Olhem que vieram muitos para a levar. 

A Maria conversou durante toda a tarde com as "pessoas muito simpáticas da associação que ajuda todas as crianças maltratadas". Disse-me sorridente, "hoje vou embora, vou para outra associação. Durmo lá. É um sítio bom.".

E hoje levaram a Maria. A Maria é uma criança que tem sido maltratada por quem a deveria amar mais. Acarinhar mais. Preocupar mais. Proteger mais. Uns dias chorava...outros apenas se sentava no silêncio de quem lhe chove na alma.

Um dia era uma marca de punho fechado. Outra de fivela. O corpo queimado, a mão em ferida. Um dia chorava que não tinha brinquedos. Outro...que havia sido trancada num sótão escuro.

A Maria tem o sorriso mais sincero que conheço e o olhar mais triste que já vislumbrei. Conversou toda a tarde e desenrolou um novelo de milhares de lágrimas.

Chorei eu que as entranhas se retorceram perante tamanha maldade. Choraram os muitos que vieram buscá-la.

E hoje levaram a Maria mas deixaram o Pedro. O irmão que protege. O outro lado do coração. O mesmo sorriso, igual tristeza: agora mais só. Agora sem protecção.

"Pedro, a Maria vai para um sítio e queria despedir-se de ti...". Saltou da cadeira, choveram trovoadas de medos, caíram todas as lágrimas que o mundo construiu para serem choradas. Parou-se o tempo.

Levaram a Maria, deixaram o Pedro. Ele agarrado às costas da irmã. Ela a morder o lábio da saudade.
Eu a morrer um pouco. a calar-me tanto. A desmaiar de dor.

Fiquei a vê-la sair. Depois corri para o Pedro. Abracei-o, dei-lhe colo e disse que o amava. Ele sorriu um sorriso pequenino e triste, encostou a cabeça e segredou-me: A Maria também...e hoje levaram-na.