terça-feira, 19 de março de 2013

O meu pai é o Alexandre Diegues

Hoje é dia de S. José... Logo, decidiu-se ser Dia do Pai.

Gosto. Gosto muito.

Até porque deste lado da chuva, se me prendo em reflexões, me dedico a amar incondicionalmente a vida, se me desdobro em solidariedade, em compreensão, em capacidade de revolta, em defesa de todos os outros que considero mais frágeis..., se luto de olhos fechados e de coração aberto, devo-o ao meu PAI.

Aquele que me soube dar a mão no momento certo, que soube abraçar e silenciar o aperto, que me soube chamar à razão quando cegamente eu avançava sem freio, derrubando quase tudo. O meu PAI, que traz a alma cheia de paixão pura e que nos olhos traduz a água cristalina dos trilhos da vida, conhece o sabor do suor, da derrota, da perda, da saudade. 

É um contador de estórias de vida, de amor, de guerra, de aventuras, de desilusões. Sabe as pausas que as palavras merecem e conhece a linha ténue que divide a fantasia de tudo o que é sensorial, emocional, real, estrutural. Discursa sobre castelos, princesas presas numa torre, tesouros escondidos nas paredes de sua casa e sobre a moeda que se prendeu onde não devia, sobre o "Sachão" - que lhe arranca um sorriso de criança -, ou os banhos no Sabor, os lobos caçados...as vendas na rua de trás, as fugas com o sabão à cabeça. Quando canta uma estória, as frases surgem e as temáticas viajam, as gargalhadas sucedem-se e os olhos rasam de água.

Gosto. Gosto muito.

E sei-o. Como sei de todos os sacrifícios que fez para que eu chegasse até aqui. Cada lágrima, cada noite sem dormir, cada poupança. E Sei-o. Não conhecesse eu o olhar de desafio, de aperto, de gargalhada. Não soubesse eu de cor a forma como me acompanha deste lado da chuva e comigo arrepia caminhos de pão. Enternecida, a cada dia, vejo-o amadurecer, ganhar mais doçura, tal os figos que são brindados com o sol e soltam um pingo de mel ou as amoras que se colhem na berma da estrada, doces, escuras. Não lhe adivinho o pensamento...mas leio cada cabelo branco como uma conquista vitoriosa e, orgulhosamente, grito ao mundo que sou sua filha, tal como me dizia que fizesse sempre. E fiz. Confiante, dizia para mim...:

- O meu PAI é o Alexandre Diegues. 


sexta-feira, 15 de março de 2013

A culpa...a angústia de a conhecer.

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Sofro. Que isto de estar do lado errado do sol, sorvendo pingos de chuva e sugando saudades múltiplas pode tornar-nos menos sagazes, menos expeditas, menos coerentes, menos atentas. Passam-se os dias, renovam-se memórias...e turvam-se-me as ideias, como se deste lado a chuva fosse quente, formando uma nuvem de fumo espesso, assim que toca o chão. Hoje acordei.

"A Maria João está a ligar para o 112!", rompeu sala dentro um dos meus colaboradores, trazendo pela mão a pequenita, franzina e assustada miúda. Olhava o chão, envergonhada, com duas rosetas enormes...tal era o tamanho do constrangimento.

Para o 112, perguntava eu...retorcendo o sobrolho para que a gravidade fosse tida em conta. Pedi-lhe que se chegasse a mim...mantive-me sentada para que igualássemos tamanhos, puxei-a suavemente encostando-a ao meu ombro e retomei:

- Para o 112, Maria João? Tu sabes a gravidade disso?... Não se usa essa linha telefónica sem mais nem menos... - E lá  iniciei uma "brilhante" prelecção, sem que a miúda conseguisse levantar o olhar do chão...ou as rosetas se esbatessem! - Que tu repara - continuava eu - que enquanto estamos a ocupar uma linha destas com uma brincadeira, alguma coisa de muito grave pode estar a acontecer!

"Eu liguei ontem..." - sussurrou...

E eu continuei, numa surdez imensa, em torno do meu umbigo e da vontade que tinha em lhe explicar tudo. Ou quase tudo. Quando acabei perguntei-lhe se tinha entendido...ela fez sinal que sim, dei-lhe um beijo na testa e deixei-a sair do meu gabinete.

Estupidamente convencida estava que teria sido fantástica na metodologia, na forma como me expressei, no modo como a chamei à razão, no gesto, no carinho. Cega. 

Uma hora depois chegou a mãe da Maria João, vinha ferida num pé...coxeava muito mais na alma e trazia um mundo de sofrimento com ela. Abracei-a e ajudei-a a sentar-se. 

"O meu homem...pu-lo fora de casa, bateu com o portão do quintal no meu pé...fiquei sem a ponta de um dedo... Não fosse a Maria João ter ligado para o 112..." ... (Deixei de ouvir. O meu batimento cardíaco acelerou e na minha garganta nasceu um nó de nojo e raiva que continuamente gritava e revia a frase sussurrada "Eu liguei ontem....". Como deixei que uma parede de chuva densa se tivesse erguido à minha volta? Como não consegui ler os sinais de fumo, na voz daquela menina? Como fui capaz de ser tão egoísta ao ponto de me adormecer em palavras ocas, quando o que ela queria era contar-me o terror que havia vivido na noite anterior?) 

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Que agora nem consigo resistir ao sentimento de culpa. Nem quero. Porque já dizia Séneca, "nenhum culpado se livra do castigo".