sexta-feira, 19 de julho de 2013

Posso pintar um graffiti?...

Este texto não reproduz nada que tivesse acontecido este ano... ou no ano anterior a esse. Esta estória passou-se há tempos, mas de quando em vez assombra os meus dias. Na maioria das vezes faz-me sorrir, outras, traduz-se numa saudade imensa e a chuva da alma cai-me dos olhos em jeito de água salgada.

Era um rapaz, quase como todos os outros que por estes corredores passam..., tinha um nome diferente, um tom de pele com sabor a chocolate de leite, uma boca carnuda, uns olhos pestanudos, grandes, vivos. Quando se ria...tudo se iluminava, mas quando refilava, quando se aborrecia, o que acontecia muito mais do que se poderia prever, tudo nele era explosivo. Os olhos ganhavam um tom cinza, o queixo colava ao peito, a voz era gutural seca agressiva. Os braços cruzavam-se em frente do corpo, como se de um escudo se tratassem e, invariavelmente, a alma chovia-se-lhe pelas janelas do corpo... Pudesse eu fazer um desenho desses momentos que ele estaria rodeado de água por todos os lados. Uma ilha de emoções. 

Como eu. Uma ilha de emoções...mas sem o outro lado da chuva.

Um dia cheguei à sala e disse que íamos fazer umas pinturas! Comecei então a explicar, enquanto preparávamos o espaço, que gostava que explorassem as cores, o corpo, que pintassem a alma, caso considerassem que esta merecia ser pintada, que falassem com a tinta, as mãos, a cara, o cabelo. Mas havia regras... Ninguém podia pintar casas, nuvens, o sol, a relva, o céu, flores, árvores... Ou pelo menos, em boa verdade, "ninguém podia pintar aquelas coisas todas da maneira como sempre pintavam". Tinham de encontrar outro traço, outra textura, nova comunicação.

A emoção fervilhava, sentia-se, via-se. 

"Podemos pintar com as mãos?", que sim... "Posso pintar um graffiti?c"

Podes, pensei..., "podes, sim...mas repara...que graffiti vem de grafito, que é uma pintura na parede..., aqui vamos usar o papel, as mesas, tinta de água..."

"Mas posso desenhar mesmo o que eu quiser, como se fosse um 'gajo' dos grafitties?"

Sorri. Olhei para ele e disse-lhe que podia ser ele próprio e desenhar o que bem quisesse...desde que se sentisse bem...

Começou por pintar tudo negro, disse-me que aquilo era a noite...depois colocou um ponto branco e contou-me que era assim que via a lua, com as mãos cheias de amarelo ia pintalgando o preto da base, chamou-me e segredou-me aquilo eram os sonhos que se separavam dele quando tinha medo. Pegou num pincel cheio de tinta vermelha...começou a chorar e sussurrando:

- Isto é o sangue que eu vi...antes de fugir. Era muito.

Ao trabalho, chamou-lhe saudade.

Abracei-o e beijei-lhe o cabelo...milhares de vezes, nem sei contar quantas. Desde esse dia, sempre que se aborrecia...pedia-me para pintar. Cada traço, um pedaço de vida.

Hoje, nem sei que fará...mas espero bem que continue a ser um 'gajo' que fala com a cor, que cheire a chocolate de leite, que tenha as pestanas cheias de emoção e que o amarelo dos seus sonhos, nunca mais se separe dele. 




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