sexta-feira, 15 de março de 2013

A culpa...a angústia de a conhecer.

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Sofro. Que isto de estar do lado errado do sol, sorvendo pingos de chuva e sugando saudades múltiplas pode tornar-nos menos sagazes, menos expeditas, menos coerentes, menos atentas. Passam-se os dias, renovam-se memórias...e turvam-se-me as ideias, como se deste lado a chuva fosse quente, formando uma nuvem de fumo espesso, assim que toca o chão. Hoje acordei.

"A Maria João está a ligar para o 112!", rompeu sala dentro um dos meus colaboradores, trazendo pela mão a pequenita, franzina e assustada miúda. Olhava o chão, envergonhada, com duas rosetas enormes...tal era o tamanho do constrangimento.

Para o 112, perguntava eu...retorcendo o sobrolho para que a gravidade fosse tida em conta. Pedi-lhe que se chegasse a mim...mantive-me sentada para que igualássemos tamanhos, puxei-a suavemente encostando-a ao meu ombro e retomei:

- Para o 112, Maria João? Tu sabes a gravidade disso?... Não se usa essa linha telefónica sem mais nem menos... - E lá  iniciei uma "brilhante" prelecção, sem que a miúda conseguisse levantar o olhar do chão...ou as rosetas se esbatessem! - Que tu repara - continuava eu - que enquanto estamos a ocupar uma linha destas com uma brincadeira, alguma coisa de muito grave pode estar a acontecer!

"Eu liguei ontem..." - sussurrou...

E eu continuei, numa surdez imensa, em torno do meu umbigo e da vontade que tinha em lhe explicar tudo. Ou quase tudo. Quando acabei perguntei-lhe se tinha entendido...ela fez sinal que sim, dei-lhe um beijo na testa e deixei-a sair do meu gabinete.

Estupidamente convencida estava que teria sido fantástica na metodologia, na forma como me expressei, no modo como a chamei à razão, no gesto, no carinho. Cega. 

Uma hora depois chegou a mãe da Maria João, vinha ferida num pé...coxeava muito mais na alma e trazia um mundo de sofrimento com ela. Abracei-a e ajudei-a a sentar-se. 

"O meu homem...pu-lo fora de casa, bateu com o portão do quintal no meu pé...fiquei sem a ponta de um dedo... Não fosse a Maria João ter ligado para o 112..." ... (Deixei de ouvir. O meu batimento cardíaco acelerou e na minha garganta nasceu um nó de nojo e raiva que continuamente gritava e revia a frase sussurrada "Eu liguei ontem....". Como deixei que uma parede de chuva densa se tivesse erguido à minha volta? Como não consegui ler os sinais de fumo, na voz daquela menina? Como fui capaz de ser tão egoísta ao ponto de me adormecer em palavras ocas, quando o que ela queria era contar-me o terror que havia vivido na noite anterior?) 

Mordo-me por dentro, por fora...mordo-me até fazer ferida ensanguentada. Que agora nem consigo resistir ao sentimento de culpa. Nem quero. Porque já dizia Séneca, "nenhum culpado se livra do castigo".


1 comentário:

Anónimo disse...

...Não, só os politicos...sorry